Você gosta de cinema cult ou de cinema comercial? Cinema de arte ou de entretenimento? Essas expressões fazem parte do nosso cotidiano, sem nos darmos conta de sua origem. É comum chegarmos à locadora de DVDs e ir direto aos gêneros ‘comédias românticas’, ‘suspense’, ‘terror’. Curiosamente, um pouco escondidas estão as prateleiras “cinema de arte” ou “cinema europeu”. A grande maioria dos filmes disponíveis nessas locadoras -– de todos os gêneros – é de origem estadunidense, a indústria cinematográfica que domina o mercado desde a 1ª Guerra Mundial. Cinema brasileiro, europeu, asiático, latino-americano são minoria. Por conta dessa hegemonia norte americana, identificamos a sua produção como ‘filmes comerciais’ e a produção europeia e asiática como ‘filmes de arte’.  Será que é tão simples assim?

É verdade que a contradição
Arte X Indústria está presente desde os primórdios do cinema no final do século XIX. É certo também que o objetivo comercial prevaleceu nos EUA e as experimentações estéticas foram mais fortes na Europa. Mas sempre houve diálogo entre os dois polos, principalmente entre EUA e França, os dois países que disputaram a hegemonia da indústria cinematográfica. A Alemanha e a Rússia também tiveram peso cultural importante, a partir dos anos 1920.

No início do cinema, a Europa dominava o mercado internacional de filmes, sendo que a indústria francesa era a mais forte. Segundo Flávia Cesarino Costa, pesquisadora da fase conhecida como o
primeiro cinema, entre 60% e 70% dos filmes exibidos nos Estados Unidos eram franceses. A maior distribuidora de filmes era a empresa francesa Pathé, que teve escritórios no mundo todo, fabricando os filmes, as câmeras, os projetores e as películas para as cópias, além de representar outras companhias. Além dela, a produtora e distribuidora Gaumont ganhou força na Europa e no mercado norte-americano, possuindo o maior estúdio do mundo.

As técnicas de filmagem e os estilos narrativos do cinema europeu eram rapidamente assimilados pelos EUA e vice-e-versa. Um exemplo interessante: havia diferenças no posicionamento da câmera. Enquanto os cineastas dos Estados Unidos realizavam a filmagem com a câmera na altura dos ombros, na
Pathé os cineastas franceses rodavam os filmes com a câmera na altura da cintura. Quando, em 1913, os franceses começaram a filmar do jeito dos americanos, com a pessoa enquadrada a partir dos joelhos e câmera posicionada na altura do ombro deram a isso o nome de plano americano. E, entre os americanos quando passaram a enquadrar os atores numa linha a quatro metros da câmera, denominaram primeiro plano francês. No desenvolvimento da linguagem nascente do cinema, muitas eram as experiências técnicas e estilísticas que rapidamente eram difundidas entre os dois continentes.

A Primeira Guerra Mundial alterou esse quadro. Ela provocou a queda brutal da produção cinematográfica em toda a Europa (o impacto da 1ª Guerra 14-18 na sociedade e no cinema é abordado no filme
A Invenção de Hugo Cabret, de Martins Scorsese, 2011). Já nos Estados Unidos, o cineasta D.W. Griffith realizou o primeiro fenômeno de público da história do cinema: O Nascimento de uma Nação (1915), pela produtora Biograph. Nascia o cinema hollywoodiano e a visão do cinema como negócio, com necessidade de sucesso comercial e lucro rápido. Após o final da primeira grande guerra, 85% dos filmes exibidos no mundo todo eram americanos, supremacia que se mantém até os dias atuais.

Já na Europa, após a primeira guerra, o cinema adquire o
status da arte. Parte da intelectualidade que entendia o cinema apenas como entretenimento, passou a compreendê-lo como experiência de reflexão e crítica. No período entre guerras (anos 1920 e 1930), os europeus voltaram a realizar filmes e desenvolveu-se uma fase de muita experimentação estética, com as chamadas vanguardas artísticas, promovendo um forte diálogo entre cinema, música, teatro e artes plásticas. Na Alemanha, o expressionismo alemão levou para o cinema o mal estar causado pela guerra. Seus cenários e maquiagem distorcidos revelavam uma sociedade doente, com autoridades desacreditadas. Cineastas como Fritz Lang, F.W. Murnau, Robert Wiene e Paul Leni estimularam outros movimentos de vanguarda, como a montagem soviética, o impressionismo francês, o realismo poético e o surrealismo. Apesar dos americanos terem se encantado com expressionismo alemão e mesmo importado seus cineastas, nos EUA eles não tiveram a liberdade necessária à experimentação já que a bilheteria era o mais importante. Ficou muito clara a diferença entre as duas concepções de cinema.

O cinema americano desenvolveu suas fórmulas de sucesso, o chamado ‘cinema de gêneros’ – com westerns, comédias e musicais. As decisões sempre estavam nas mãos do produtor, antenado com a bilheteria e cercado de artistas e técnicos da qualidade: atores e atrizes, diretores, fotógrafos, figurinistas, cenógrafos e montadores. O cinema norte-americano se torna indústria. Além de gerar riqueza passa a ter um papel fundamental na difusão da ideologia americana: o capitalismo e o
american way of life. A cultura de celebridades – conhecida como Star System – é fundamental para que os espectadores quisessem ir assistir aos filmes estrelados por seus atores preferidos, como Tom Mix, Theda Bara, Douglas Fairbanks e Rodolfo Valentino.

A depressão dos anos 1930 e o advento do cinema sonoro promovem uma turbulência no mercado de cinema norte-americano, mas logo se vê uma recuperação com as comédias otimistas de Frank Capra, o western sofisticado de John Ford, Howard Hawks e John Huston. Em 1941, Orson Welles dirige seu primeiro longa-metragem –
Cidadão Kane, obra prima da história do cinema de todos os tempos.

Passada a segunda guerra, o cinema torna-se quase uma febre na Europa. A produção norte-americana realizada no período da guerra chega aos cinemas europeus. Na Itália, a produção volta-se para um cinema engajado, que mostra o cotidiano e a dureza da vida das pessoas comuns, em tempos difíceis (o movimento foi denominado neorrealismo italiano). Especialmente na França, na capital e nas pequenas cidades (e também nos círculos estudantis e operários), os cineclubes ganham força
.  Assistir a um filme é mais do que entretenimento, mas a oportunidade de exercitar o debate, trocar experiências, adquirir cultura e aprender. O movimento ganha o mundo entre os anos 1950 e 1980, inclusive no Brasil.

Nos EUA também se formaram diretores com marca autoral, que não se comportam segundo as fórmulas de Hollywood. Entre os cineastas considerados “independentes”, estão os nomes consagrados de Charles Chaplin, John Cassavetes, Woody Allen, Clint Eastwood, Steven Soderbergh, entre outros.

O cinema, independente de sua nacionalidade, orçamento e concepção, é comercial e artístico ao mesmo tempo. É possível aliar entretenimento e arte, diversão e ampliação do repertório cultural. Por isso mesmo, os filmes são potencialmente educativos. Quando pensamos em cinema e educação, a mediação do educador é que faz a diferença, pois permite transformar os filmes que também visam lucro em narrativas transformadoras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPUZZO, Heitor. Cinema – a aventura do sonho. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1986.

COSTA, Flávia Cesarina. Primeiro Cinema, in: MASCARELLO, F. (org) História do Cinema Mundial, Papirus: Campinas, 2006.

MOGADOURO, Cláudia. Educomunicação e escola: o cinema como mediação possível (desafios, práticas e proposta). Tese de Doutorado, ECA-USP, 2011. 

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Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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