Ao pensar em censura no Brasil, nos vêm à mente a ditadura militar (1964-1985). Os mais velhos pensarão também na ditadura de Vargas, o Estado Novo (1937-1945). Vamos recuar um pouco no tempo, só para lembrar que a censura surgiu por iniciativa da Igreja Católica, no século XVI, no momento em que vê o seu poderio ameaçado pela Reforma Protestante. Proibição de posse e circulação de impressos e de livros foi um dos atos de censura. E as práticas foram sendo usadas por todos os que se valeram do poder que tinham para calar adversários: reis impediram a divulgação de ideias antimonarquistas, ditadores como Hitler e Mussolini proibiram qualquer crítica vinda sob a forma de opinião, jornal, e mesmo a produção artística (pintura, teatro, música, etc), governos comunistas impuseram leis restritivas à manifestação de quaisquer opiniões contrárias, valendo-se, inclusive, de delação. Vários países ainda mantêm leis de censura.
O cinema também ganhou o interesse da censura, visto que, desde a sua invenção, destacou-se como um importante instrumento de transmissão de valores morais e ideológicos. Nos Estados Unidos, durante a guerra fria, no período conhecido como macarthismo (1945-1953), o governo perseguiu e prendeu diversos artistas e intelectuais, acusados de comunistas. Charles Chaplin, por exemplo, foi banido dos EUA nessa época.
Os EUA tornaram-se hegemônicos na indústria cinematográfica, desde a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), posição consolidada ao fim da Segunda Guerra Mundial (1945). O cinema transformou-se em uma das maiores economias norte-americanas e instrumento de propaganda e dominação ideológica. Apesar da predominância de protestantes (metodistas, batistas e presbiterianos), os produtores de Hollywood se viram na mira de muitas acusações, especialmente por parte dos católicos, defensores da moral e dos bons costumes.
Para limpar sua imagem, os estúdios criaram e colocaram em prática, em 1933, o Código Hays. Escrito por um dos líderes do Partido Republicano dos EUA, o advogado William H. Hays, o código funcionava como censura prévia. Entre as várias regras, proibia a nudez e o casamento inter-racial, definia a duração de um beijo, a cenografia do quarto do casal (mesmo oficialmente casados no filme, dormiam em camas de solteiro), proibia cenas de violência, bandidos nunca poderiam se dar bem, autoridades políticas e religiosas não podiam ser ridicularizadas e os desfechos necessariamente tinham que ser felizes. O código entra em decadência em meados dos anos 50, mas só será substituído pelo sistema de classificação etária, em 1968, e que permanece até hoje. Curiosamente foi criado e executado pelos estúdios e não pelo governo federal.
Como a censura se manifestou no cinema no Brasil?
No caso do Brasil, que tem uma tradição autoritária, a censura se confunde com medidas educativas e com o conformismo de se esperar que o estado paternalista nos diga o que ver, o que ouvir, o que ler e o que falar.
Desde o surgimento do cinema no Brasil, no início do século XX, a Igreja Católica assumiu a defesa da moral e a censura contra a sedução em potencial do cinema. Por ser uma República, com o Estado separado da Igreja, a determinação da censura não se dava de modo oficial, mas tinha o apoio dos órgãos oficiais.
Nos idos de 1910, alguns católicos criaram a Liga Antipornográfica da União Católica Brasileira que assistia às sessões de cinema com ingresso garantido pelos chefes de polícia. Depois, informavam à polícia se o filme era moralmente aceitável ou não. Se fosse o caso, essa liga indicava quais os cortes a serem feitos.
A imprensa católica, por meio dos jornais “A União” e “Vozes de Petrópolis” comentava a imoralidade de certos filmes assim como recomendava títulos ao público católico, chegando a publicar “guias para cinema”. Em 1918, foi criada a censura prévia ao cinema pela igreja, mas aceito pelas centrais de polícia locais. Após o estabelecimento de um acordo com as principais agências cinematográficas, o Centro da Boa Imprensa promovia a exibição de filmes antes de sua estreia no circuito comercial, em sessões promovidas pelos próprios exibidores. As apreciações apareciam no jornal “A União”, na seção “Palcos e Telas”, classificados em três categorias: “inofensivos”, “aprovados com reservas” e “prejudiciais”.
Com o mercado cinematográfico ainda incipiente, as críticas dos católicos representaram, naquele momento, uma referência de gosto para o público, tendo os exibidores que se curvar a esse tipo de censura. Mas nos anos 1920, a indústria de cinema no Brasil se estabilizou um pouco e, embora a visão católica continuasse influente, a censura ganhou outra roupagem: a perspectiva dos educadores. Independente da religião, intelectuais e educadores republicanos também se preocupavam e se manifestavam contra o “mau cinema”, exigindo medidas de controle das autoridades. E a “salvação” para as influências negativas do cinema era o seu aproveitamento para fins educativos.
A publicação de dois livros em 1931 é um fato significativo: Cinema e Educação, de Jonathas Serrano e Francisco Venâncio Filho, e Cinema contra Cinema, de Joaquim Canuto Mendes de Almeida.
O conceito do cinema como auxiliar de uma educação modernizante, em consonância com as transformações pelas quais o país passava, e também como instrumento disseminador dos “bons costumes e valores”, pode ser visto no prefácio do educador Lourenço Filho ao livro Cinema contra Cinema. Este último opunha o “mau cinema”, isto é, os filmes que seriam perniciosos às crianças e adolescentes, ao cinema educativo. Daí o título do livro.
A primeira regulamentação oficial da censura ao cinema no Brasil ocorreu em 1928 e era de responsabilidade do Ministério do Interior e da Justiça. A ênfase de tal medida disciplinar recaía nos curtas metragens que poderiam expor a precariedade econômica do país. Mas há registros de muitas reclamações, especialmente em artigos das revistas pedagógicas, de que seria necessário um controle mais rígido por parte do Estado para que a censura tivesse um caráter “cultural”, o que significava zelo pelos padrões morais da sociedade.
Os artigos reivindicavam que esse controle deveria estar na mão de educadores, o que efetivamente aconteceu em 1932, quando o serviço de censura passou a operar nacionalmente, e sob a alçada do Ministério da Educação e Saúde Pública. Mas essa iniciativa dura pouco, porque em 1934 é criado o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (CPDC), cuja gerência sai da pasta da Educação e volta para o Ministério da Justiça e Negócios Interiores.
Em 1939, já no Estado Novo, é criado o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), vinculado diretamente ao presidente Vargas, com objetivo de centralizar toda a área de comunicação governamental, incluindo o cinema no que diz respeito à censura, fiscalização, exibição e produção de filmes. Com o fim da Segunda Guerra, o Brasil experimentou um ensaio de abertura democrática, mas o alinhamento do governo Dutra com os EUA, no contexto da Guerra Fria, definiu tanto a censura como a entrada do cinema norte-americano, sob as regras do Código Hays. É criado o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), em 1946, impedindo a exibição sem censura prévia e sem certificado de aprovação. A preocupação com o comunismo internacional e com a subversão política aliava-se à tradição da moral e bons costumes.
Dos anos 1950 à metade da década de 1960, houve uma fase de grande efervescência cultural e política. Junto com todas as expressões artísticas, o cinema despontou com produções que buscavam a identidade brasileira. Chegava o Cinema Novo, resgatando o passado político do Brasil e propondo projetos para o país.
Após o golpe militar em 1964, a censura se acirrou e cineastas do Cinema Novo tinham que fazer malabarismos, enviando os filmes prontos para o exterior, antes de cair nas mãos da polícia. Assim os filmes “salvos”, foram premiados nos festivais de cinema internacionais, ganhando uma legitimidade cultural “apesar dos militares”.
É enganoso pensar que a simples extinção da censura prévia, como aconteceu a partir da constituição de 1988, seja suficiente para eliminar os danos que essa tradição de cerceamento da liberdade de expressão causou nas mentes e corações dos brasileiros. Fica evidente que deixar a responsabilidade da análise e julgamento de filmes – e de qualquer produção simbólica – para o Estado, é depender dos critérios subjetivos da moral vigente e dos instrumentos políticos do governo que estiver no poder. Censurar filmes é impedir que chegue à população (ou ao público do cinema) a pluralidade de ideias, a diversidade estética, a discussão da complexa questão moral e ética que nos cerca. A censura é deseducativa à medida que impede que as pessoas formem o seu juízo de valores e escolham o que querem assistir.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Cláudio Aguiar de. A Igreja Católica e o Cinema: Vozes de Petrópolis, A Tela e o jornal A União entre 1907 e 1921. In: CAPELATO (et al.) História e Cinema. São Paulo: Alameda, 2007.
COSTA, M. Cristina C. Opinião Pública, comunicação, liberdade de expressão e censura. In: COSTA, C (org.) Comunicação, Mídias e Liberdade de Expressão, São Paulo: Intercom, 2013.
LIMBERTO, Andréa e REIS Júnior, Antônio. Censura à imagem em movimento: interdição, resistência e negociação de sentido. In: COSTA, C (org.) Comunicação, Mídias e Liberdade de Expressão, São Paulo: Intercom, 2013.
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