Em artigo anterior, foram destacadas dimensões que parecem justificar o desenvolvimento dos cursos massivos abertos online (Moocs), no contexto dos EUA. Agora, é interessante mencionar as principais críticas que o formato recebe.
É possível dividir as críticas e questionamentos aos Moocs em dois grandes grupos, um que enfoca menos os cursos em si e mais a sua comparação com o ensino presencial, destacando o que podemos chamar de “externalidades” relacionadas com a formação e seus desdobramentos no sistema de ensino superior. Neste conjunto, podem ser destacados os seguintes pontos:
- A qualidade diferenciada do ensino presencial na educação superior, capaz de proporcionar uma experiência significativa e prover os alunos de contatos e relações úteis em suas vidas;
- A possível massificação e perda da diversidade cultural e educativa no ensino superior, a partir de uma ampla disseminação de Moocs;
- A transformação da educação em “commodity”, com ênfase excessiva na quantidade e não na qualidade dos processos, ao que se associa um discurso fortemente ancorado no marketing educativo, por parte das instituições que promovem os cursos online.
O outro conjunto de argumentos críticos relaciona-se ao potencial intrínseco e às estratégias pedagógicas dos Moocs, e pode ser expresso em questões como:
- O modelo pedagógico dos cursos;
- A avaliação, o acompanhamento dos estudantes e as estratégias didáticas de maneira geral;
- A maior dificuldade de planejamento dos cursos de humanas no formato Mooc;
- O nível de exigência e a qualidade, aparentemente muito variável, dos cursos;
- O potencial econômico e as questões de direitos autorais quanto aos Moocs.
Vale notar que o sistema universitário dos EUA tem uma característica parecida com o brasileiro, o que é importante na discussão do primeiro grupo de críticas. Lá como cá, existe uma diferenciação clara entre instituições universitárias de elite, de teor seletivo e exigência acadêmica elevada, e um grupo bem maior de faculdades menos seletivas, com fins lucrativos ou comunitárias. Estas atendem a alunos que geralmente precisam trabalhar, oferecendo cursos que preparam os estudantes para profissões específicas. Foram estas instituições que garantiram a amplificação da oferta de ensino pós-secundário nos EUA, e de certo modo estão fazendo isso no Brasil. Para se ter ideia do que significa desta estratificação, conforme dados do
Censo da Educação Superior 2011, neste ano, os formandos brasileiros de instituições particulares foram 78,5% do total. Nos EUA, estima-se que o setor universitário mais aberto compreende 80% das instituições de ensino.
Entretanto, em função do significado cristalizado historicamente na ideia de ensino superior, as universidades são vistas ou pensadas, de acordo com a observação do escritor Nathan Heller, como “lugares especiais, acreditamos: jardins onde o povo escolhido escapa de suas vidas normais para cultivar a Vida Mental”. Nestes “lugares especiais”, as relações humanas, entre professores, alunos e destes entre si têm forte centralidade e importância. “A tela de um computador nunca seria mais do que uma sombra de uma boa sala de aula universitária” para alguns acadêmicos, nota Nicholas Carr.
Tão relevante quanto esse argumento, e associado a ele, é o fato de que a educação superior presencial propicia contatos, redes de relações úteis durante e após os estudos universitários, em suma, um “capital social” de acumulação mais incerta no contexto online. Como nota, com perspicácia, Nathan Heller:
“O acesso à ‘educação de elite’ pode significar mais sobre o acesso às elites do que sobre o acesso ao ensino em sala de aula. Bill Clinton, um garoto de classe média baixa de Arkansas, poderia ter recebido uma educação igualmente distinta, se não tivesse ido para Georgetown, Oxford e Yale, mas ele não teria sido presidente.”
Tal como os MOOCs vêm sendo pensados, ou seja, principalmente como uma alternativa para os estudantes excedentes, provavelmente eles não dariam “acesso à elite”, e por isso poderiam, tanto quanto “democratizar” a educação superior, cristalizar diferenciações sociais. Existem habilidades sociais importantes para os indivíduos, cujo desenvolvimento depende da interação, defende a professora da Faculdade da Cidade de Nova York Jennifer M. Morton (
Unequal Classrooms: What Online Education Cannot Teach.
The Chronicle of Higher Education, 29/07/2013). Nesse sentido, ela observa que, caso os MOOCs tornem-se a norma nas faculdades para estudantes que não pertencem à classe média, nos Estados Unidos, “a segregação socioeconômica do sistema educacional vai se estender para o nível pós-secundário, e vamos ver a diferença entre desfavorecidos e favorecidos crescer, e não diminuir”.
É possível pensar, por outro lado, que a ampliação do acesso à educação superior tem sempre um ônus e, admitindo que os MOOCs possam oferecer educação de qualidade, eles seriam melhores do que nenhuma educação ou um ensino de pior qualidade. Porém, caso os MOOCs integrem-se sistemicamente a um sistema de educação superior, eles podem provocar a diminuição na diversidade do mesmo. Poucos cursos, produzidos por universidades de elite e com a assinatura de professores prestigiados, poderiam ser oferecidos por muitas faculdades. Isto pode ser interessante para a saúde financeira do sistema, mas seria bom para os fins da educação e mesmo da cultura de maneira mais ampla?
Nessa perspectiva, mesmo entre docentes das universidades que promovem MOOCs, há opiniões contrárias a eles. O professor de alemão de Harvard Peter J. Burgard (citado na reportagem de Heller) apresenta preocupações quanto à possibilidade dos MOOCs prejudicarem as faculdades menores inicialmente e, ao longo do tempo, todo o sistema educativo dos Estados Unidos. No início, as faculdades poderiam dispensar professores mais titulados, contratando adjuntos com menor remuneração para acompanhar a feitura dos cursos online pelos estudantes. Isto implicaria na futura diminuição dos contratos de doutores, o que afetaria as pós-graduações e a própria carreira docente. Na sequência, conforme o raciocínio de Burgard, haveria “menos campos e subcampos ensinados. E, quando menos campos e subcampos são ensinados, corpos de conhecimento são negligenciados e morrem”.
Ao analisar o tipo de discurso mobilizado pelas grandes empresas produtoras de MOOCs (Coursera, Udacity e edX) a propósito da “abertura” (
openness) propiciada por este tipo de curso, o professor da Universidade de Edimburgo Jeremy Knox (
The Limitations of Access Alone: moving towards open processes in education.
Open Praxis. Vol. 5, n. 1, pp. 21-29, 2013) nota que existe uma ênfase no acesso ampliado, que tende a fetichizar o conhecimento, tratando-o como um objeto consumível – e que é produzido por instituições tradicionais que reforçam sua autoridade ao “doar” tal conhecimento.
Na verdade, para o Knox, esta visão pouco crítica tem sido uma tendência geral do movimento REA, que acaba, muitas vezes, simplificando a compreensão sobre a “abertura”, entendida somente a partir do acesso ampliado aos conteúdos educativos. Nesta perspectiva, perdem-se de vista dimensões como as particularidades das tecnologias utilizadas e seu teor não neutro, que possui certa agenda oculta.
As críticas internas aos MOOCs
O professor da Faculdade de Direito de Harvard William W. Fisher III (também ouvido na reportagem de Nathan Heller) afirma que duas características têm predominado nos modelos atuais dos MOOCs: por um lado, a transmissão de conteúdo, num formato broadcast (um para muitos), como se um “guru no topo da montanha” propagasse seu saber. Por outro, há um padrão de interatividade fortemente ancorado nas possibilidades automatizadas dos ambientes de aprendizagem (testes padronizados, respostas do tipo certo ou errado).
A falta de engajamento e motivação de parte significativa dos alunos que ingressam nos cursos e que acabam não os concluindo pode estar relacionada a estes aspectos. Conforme comentário anterior, a taxa de conclusão dos MOOCs dificilmente ultrapassa 10% dos matriculados.
O blog
Open Culture promoveu uma enquete com seus leitores, solicitando que aqueles que já haviam desistido de MOOCs informassem os motivos de evasão. A questão do método de ensino baseado na transmissão de conteúdo em vídeos (considerado algo “cansativo”) é um dos pontos destacados pelos leitores, na
postagem que consolida os resultados. Isto leva o autor do texto a notar que: “Os MOOCs poderiam funcionar melhor se eles confiassem mais fortemente em práticas pedagógicas interativas”.
“Quando o C em MOOC remete à ideia de ‘comunidade’, me sinto mais feliz do que quando significa ‘curso’. Quero aprender e compartilhar com os outros, e me sinto mais comprometida com as experiências de aprendizagem, quando sou responsável não apenas por minha própria aprendizagem, mas se me sinto concectada e, talvez até mesmo, responsável pelos outros.”
Outros aspectos mencionados pelos leitores do Open Culture para o abandono de cursos dizem respeito às estratégias didáticas. “Descobri que as discussões no fórum não são muito úteis ou envolventes. Elas não são um substituto muito bom de discussões ativas em classe”, foi um comentário típico sobre deficiências quanto à comunicação em alguns MOOCs. Eles são também criticados por aspectos informativos e de planejamento – “Desde o primeiro dia eu não tinha ideia do que precisava fazer. […] Grupos montados com membros fantasma que nunca comentavam ou interagiam, e um currículo que estava sendo revisado enquanto o curso se desenvolvia na primeira semana”.
Em suma, a questão exposta por Nathan Heller sobre “Como promover uma discussão significativa numa classe contendo dezenas de milhares. Como você desenvolve o trabalho?” é algo que merece reflexão e aperfeiçoamentos por parte dos que planejam e ofertam MOOCs. O que predomina, atualmente, em termos do acompanhamento e avaliação dos estudantes, é o uso de testes de múltipla escolha e fóruns. A empresa edX desenvolveu um software para a avaliação de ensaios textuais dos estudantes, mas há dúvidas sobre o quanto o computador seria capaz de perceber aspectos como a ironia ou sutilezas linguísticas.
São comuns, portanto, os discursos dos produtores de MOOCs sobre a maior dificuldade de planejamento dos cursos de humanas: enquanto num curso de ciência da computação o trabalho final pode ser a feitura de um programa, cuja codificação seria avaliada por outro software, a avaliação de textos dissertativos possui mais variáveis, relacionadas às próprias disciplinas. “Quando três grandes acadêmicos ensinam um poema de três modos, isso não é ineficiência. É a premissa na qual toda a investigação em humanas está baseada”, comenta Nathan Heller.
Uma ideia que vem sendo utilizada é a “avaliação por pares”, isto é, outros estudantes leem os textos dos colegas, assim como recebem comentários destes. Algumas observações dos leitores do Open Culture foram críticas a essa estratégia, afirmando que receberam comentários rudes ou inadequados, sem que houvesse uma intervenção por parte do professor do curso ou de assistentes.
Essas avaliações dos leitores do blog mencionado não chegam a constituir uma pesquisa totalmente válida, de resultados generalizáveis a todos os cursos, porém ao menos apontam questões relevantes, bem como a diversidade que parece envolver os atuais MOOCs. Desse modo, falando da diversidade dos cursos, outros comentários de pessoas que fizeram MOOCs são quanto ao fato de que alguns cursos não parecem atingir um nível universitário, sendo muito básicos, ou – ao contrário – demandam um conhecimento prévio elevado.
A própria “gratuidade” dos cursos é questionada, pois alguns requerem a compra de materiais, como livros didáticos, para a sua realização. Um survey deste ano, com professores que realizam MOOCs (
The Minds Behind the MOOCs,
The Chronicle of Higher Education, 18/03/2013), apontou que 9% deles indicam algum livro físico, que deve ser adquirido, de leitura obrigatória; em 5% de outros casos, há a indicação de livro eletrônico.
A diversidade talvez seja, entretanto, algo que possa ter efeitos positivos: já que os modelos não estão cristalizados, alguns professores desenvolvem propostas – menos “massivas” geralmente – com pontos interessantes. São exemplos disto, a ideia de produção de um MOOC para grupos externos à universidade, como tarefa de um curso normal da mesma, ou o ensino híbrido (presencial e online) para estudantes de uma universidade e de fora da mesma. Um caso significativo deste tipo é o do curso sobre os direitos autorais na era digital, do professor, mencionado anteriormente, David Fisher, de Harvard. O curso tem a meta de transmitir conhecimentos sobre o tema para pessoas (artistas, escritores, detentores de direitos, etc.) que possam aplicá-los em seu benefício e no ambiente de trabalho. Assim, houve uma inscrição online limitada a 500 pessoas escolhidas a partir desta ideia. Os alunos do curso universitário normal atuam como “assistentes de ensino” voluntários para os estudantes online, e quinzenalmente há discussões presenciais no campus, entre todos os participantes que possam estar lá. Os que não podem acompanham o debate por transmissão na web e podem participar, enviando questões para serem discutidas.
Em casos deste tipo ocorre, ao que parece, um enriquecimento do próprio ambiente da sala de aula, ao lado da disseminação do conhecimento para além das portas da universidade, aliando ensino e extensão. No entanto, como nota Fisher, a proposta está longe de ser uma ruptura com a educação tal como a conhecemos. “É uma velha ideia – basicamente o modelo de seminário que tem funcionado por séculos”, diz ele. “Mas continua sendo uma boa ideia.”
Falando em “direitos autorais”, este ponto, assim como as questões econômicas implicadas na viabilidade econômica dos cursos, deve ser mais esclarecido nos próximos anos. Quem é o dono dos cursos – as instituições ou os professores autores? Por enquanto, como os cursos não dão lucro, tal questão tem menos importância, no entanto, dada a motivação econômica dos MOOCs, isto deve mudar. O licenciamento dos cursos entre instituições é uma ação proposta para tornar rentável o empreendimento – ou pelo menos equilibrar receitas e despesas –, porém, as instituições ainda buscam outros modelos. Como destacou uma recente
reportagem da revista The Economist, a viabilidade econômica dos MOOCs ainda é problemática.
A produção dos MOOCs é trabalhosa e cara, assim como a sua oferta e desenvolvimento. Conforme as informações do levantamento com professores que hoje realizam MOOCs:
“Normalmente, um professor gasta mais de 100 horas no seu MOOC, antes mesmo dele começar, pela gravação de vídeos das aulas e fazendo outras tarefas de preparação. Outros indicam algumas dezenas de horas para esse trabalho de base.
Uma vez que o curso inicia, os professores dedicam-se a ele normalmente de 8 a 10 horas por semana no acompanhamento. A maioria dos professores consegue não ser inundada por mensagens de seus alunos MOOC – eles normalmente recebem cinco e-mails por semana –, porém isto não era incomum para os professores que se envolviam nos fóruns de discussão.”
A despeito deste esforço (ou por conta disto mesmo), as respostas dos professores sobre o significado econômico dos cursos para suas instituições são bastante variadas: 35% acreditam que eles não modificarão os custos para obtenção de títulos de graduação em suas instituições, 40% pensam que haverá alguma diminuição, mas marginal, e 24% acreditam que a redução de valores provocada pelos MOOCs poderá ser significativa.
Ao que tudo indica, a questão econômica será vital na própria continuidade dos MOOCs e se associará fortemente à qualidade dos cursos. O vetor econômico choca-se com todas as outras dimensões que têm servido como justificativa para a educação superior online e poderá dar diferentes formas a cada uma delas: o uso de tecnologias e estratégias mais “abertas” ou fechadas, assim como os modelos pedagógicos.
Se os MOOCs pretendem ser mais do que uma moda passageira devem enfrentar os questionamentos que lhes são dirigidos. Sendo assim, os enfoques críticos têm o mérito de apontar aspectos que merecem reflexão, tanto os de teor mais estrutural, quanto os mais ligados aos procedimentos internos dos cursos.
Falamos basicamente até o momento do contexto dos EUA, embora alguns países da Europa também tenham experimentado, nos últimos anos, propostas de MOOCs. Mas o que dizer do Brasil? Iremos discutir esse tema no próximo artigo para o NET Educação.
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