Durante alguns anos mantive projetos de produção de pequenos vídeos em sala de aula. Alguns deles eram mais completos e duradouros, outros mais sucintos e rápidos, reduzindo as fases de pré-produção. Mas sempre penso que os projetos com roteiros bem estruturados têm maior chance de se tornarem bons produtos finais. Assim, sempre reservei uma ou outra aula para abordar a teoria de roteiro, mesmo quando dispunha de pouco tempo para realizar o projeto.

Como sou professor e não um profissional de cinema, tive que recorrer a livros e pequenos cursos sobre roteiros. Encontrei meu fiel escudeiro no “Manual do roteiro” do professor Syd Field (publicado no Brasil pela Editora Objetiva). Trata-se de um “passo-a-passo” para realizar roteiros cinematográficos. Estrutura, configuração do texto, etapas, dicas de sequências, inícios e finais, como escrever, como planejar, como manter os direitos autorais… Tudo aparece nesse pequeno livro muito didático e recheado de exemplos. Um ótimo companheiro para quem se aventura no campo pela primeira vez. Para os curiosos em geral, é leitura agradável e divertida.
 
E foi ali que percebi a importância da vida oculta de personagens, de tudo aquilo que constitui o personagem, mas não aparece na tela do filme. Sim, há muito da vida das personagens que não fazem parte do recorte temporal nem da temática de um roteiro, mas está lá. É essa vida oculta que dá o estofo para que os atores possam ter uma atuação que não seja mecânica ou superficial. É aquilo que permite ao ator construir um personagem em profundidade, fazer de seu ofício um processo de formação para atuar. E ficar longe de ser um canastrão. 
 
Para a construção das personagens, Field propõe um conjunto de perguntas, e são elas que fazem brotar os gestos e trejeitos que vêm do imaginário pessoal, de emoções, traumas, momentos felizes, da vida em família, amigos, desafios pessoais. Enfim, tudo aquilo que levou o personagem a ser quem ele é quando o filme se inicia. Seria algo como a própria constituição histórica e psíquica “pré-fílmica” daquela persona. E tal constituição é realizada pelo próprio roteirista, a partir da sua profunda entrega criativa.
 
Para testar a tese e ilustrar tal pensamento trabalhei com o início de dois filmes: “A lista de Schindler” (de Steven Spielberg, 1993) e “Apocaplypse Now” (de Francis Ford Coppola, 1979). Pedi aos alunos para assistirem aos primeiros minutos de cada filme para, na sequência, narrar a infância ou a juventude do personagem que observaram, seus desejos, histórias e questões. Feito coletivamente, os resultados foram incríveis.
 
No filme de Spielberg, Schindler aparece nos primeiros minutos arrumando-se para ir a um bar, onde jantam e bebem oficiais nazistas. Ele pega bolinhos de dinheiro que estão escondidos, seleciona relógios, observa a adequação e o caimento de roupas. O diretor ainda o coloca como um arguto observador e meticuloso conviva, um verdadeiro gavião predador. Percebe-se que não é um homem rico, tampouco real boêmio. Não há ali bondade, senão uma afabilidade fingida. Afinal, como foi a infância deste personagem? Se é tão manipulador e falsamente simpático, como chegou a tal grau de cinismo? Era assim na escola, com seus professores? Constituir seu mundo psicológico levará ao ápice das cenas finais, ao furor dramático que fecha a longa trama do industrial do período nazista.
 
Em “Apocalypse Now”, a imagem é outra. Naquele minúsculo quarto de hotel, em Saigon, capital do Vietnã do Sul, o oficial Willard tem delírios psicóticos, usa drogas e passa horas e horas a olhar as pás de um ventilador de teto. As imagens da destruição da guerra do Vietnã se misturam com as imagens do quarto e o personagem se deteriora em uma descida sem fim rumo a um inferno próprio.
 
Ao final de uma das sequências de abertura mais alucinantes do cinema, ele tem que ser literalmente recolhido por soldados que vieram lhe trazer uma mensagem. Novamente: quais seriam os sonhos daquele jovem veterano de guerra quando se alistou? Pelo que passou e o que foi que ele viu para acabar naquele estado lamentável? Sua infância teria sido feliz ou teria sido também um conjunto de sofrimentos? Como seus pais reagiram ao alistamento? Quando foi que experimentou drogas pela primeira vez?
 
Pode ser que parte de tais perguntas seja resolvida na trama, mas isso não é tão relevante assim. Se haverá ou não um momento de flashback ou se em um diálogo a biografia aparecerá. O que interessa é o conjunto de camadas emotivas que conseguimos identificar em tão poucas imagens. E é isso que deve estar presente nos roteiros dos vídeos que meus alunos pretendem fazer.
 
Tornar o cinema mais rico e interessante demanda um trabalho intelectual e artístico que não pode ter a profundidade de uma poça d’água. É necessário descer ao íntimo das personagens para descobrir, nas entranhas do mundo da criação do roteiro cinematográfico, de qual material emocional eles realmente são feitos.

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Autor Ricardo A. B. Lourenço

Ricardo Lourenço é bacharel em Direito, licenciado em Filosofia e mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. Atua como professor de Educação para as Mídias e Filosofia para o ensino médio, e trabalha com a difusão de cineclubes em escolas.

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