Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena! Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português

 (“Erro de português”, de Oswald de Andrade)
 
Oswald de Andrade faz uma brincadeira poética imaginando o que seria do Brasil na perspectiva do índio. Mas os brasileiros internalizaram uma imagem muito diferente. Estereotipada, ela foi construída pela literatura e, depois, pelo cinema a partir da visão que o branco civilizado fez do índio.
 
Até hoje bem popular, o gênero faroeste, reforçou o imaginário dos índios como vilões e o dos cowboys como heróis. Mas não apenas os estadunidenses olham para os nativos da América de forma equivocada. O filme britânico A Missão (Roland Joffé, 1986), muito premiado no mundo todo e tem indiscutíveis qualidades plásticas e trilha sonora maravilhosa. Mas é um filme que valoriza a aculturação promovida pelos jesuítas, os heróis desta história, já que foram eles que ensinaram aos índios primitivos a alta cultura europeia. O filme inclui a crítica ao massacre aos índios, mas o final é emblemático: a indiazinha sobrevivente salva um violino. Por que não um tambor?
 
No cinema brasileiro, os indígenas sempre foram representados de forma preconceituosa, como bárbaros ou como ingênuos, desde o tempo do cinema mudo. As mulheres mostradas com uma sensualidade deslocada de sua cultura. E nem mesmo os cinejornais, que precedem as exibições, escapam. Via de regra, valorizam todas as ações “civilizatórias” dos militares, que marcaram presença nas terras indígenas, e dos religiosos que os catequisaram.
 
Contextualizar as linguagens artísticas de certo período nos permite compreender o olhar, os temas relevantes e o debate desse tempo. O índio já está presente no movimento literário romântico do século XIX. Ali ele é o símbolo ancestral do povo brasileiro, num momento em que se buscava a identidade nacional. Já no século XX, o modernismo inverte essa perspectiva. Na literatura, a “Poesia Pau-Brasil” e o “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade buscam a raiz brasileira, uma “língua literária não catequisada”. O romance Macunaíma de Mário de Andrade (escrito no final da década de 1920 e relido nos anos 1960 pelo Cinema Novo) é outra obra fundamental do movimento modernista, que se debruça sobre o rico universo cultural brasileiro, onde o índio está presente com lendas, mitos e palavras, transgredindo a visão idílica do romantismo.
 
Nos anos 1970 dois filmes envolvem a temática indígena e merecem ser conhecidos: Como era Gostoso meu Francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971) e Iracema, uma Transa Amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1976).
 
Apesar dos títulos, não se trata de pornochanchadas. Como era Gostoso meu Francês se baseia na história de Hans Staden, o aventureiro que passou pelo Brasil no século XVI. Com diálogos em tupi, escritos por Humberto Mauro, o filme é irreverente e faz um diálogo irônico com os cinejornais e com o cinema mudo, apresentando cartelas de informações sobre a colonização portuguesa Ana Maria Magalhães se destaca como a protagonista indígena, papel que lhe rendeu diversos prêmios. A história de Hans Staden também foi filmada anos depois por Luiz Alberto Pereira (1999). A obra também quase toda falada em tupi não tem a mesma ironia. Os professores têm, sobretudo no primeiro filme, uma excelente oportunidade para discutir as diferentes visões construídas sobre os índios.
 
Iracema – Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, discute a exploração e a prostituição dos indígenas. O filme, realizado em 1976, só foi liberado pela censura brasileira em 1981, e é considerado um marco do cinema brasileiro, pois mistura documentário e ficção, tendência que fez escola no Brasil. Neste caso, a representação de Iracema, o mesmo nome da romântica personagem de José de Alencar, é de uma jovem, menor de idade, que cai na prostituição. Como tantas outras, a obra mostra a crueza da invasão das terras indígenas, pelos “brancos civilizados”, concretizada pela Transamazônica.
 
Sílvio Back, cineasta pesquisador, realizou uma ótima colagem de dezenas de filmes com a imagem do índio que resultou no documentário Yndio do Brasil (1995). O filme está disponível na internet e em DVD e ele, por si só, já suscita muitos debates sobre como o cinema ajudou a cristalizar o preconceito com a cultura indígena no Brasil. 
 
A minissérie A Invenção do Brasil, dirigida por Guel Arraes, com roteiro do próprio e de Jorge Furtado, foi apresentada pela Rede Globo no ano de 2000, por ocasião dos 500 anos da chegada de Cabral. Depois, foi transformada em filme com o nome Caramuru – A Invenção do Brasil (2001). Os protagonistas Diogo Álvares Correia, o Caramuru, e Paraguaçu são interpretados respectivamente por Selton Mello e Camila Pitanga, que mantém uma relação apimentada pela presença da irmã de Paraguaçu, Moema, interpretada por Deborah Secco. 
 
O humor é um caminho muito interessante para se rever criticamente a historiografia tradicional. No caso desta obra, o encontro de culturas é mostrado de forma totalmente inverossímil, com linguagem e trilha sonora contemporâneas. É ótimo, porque fica evidente a paródia. E nem por isso deixa de provocar bons debates para o processo educativo. Por exemplo, a poligamia é mostrada como um dado da cultura indígena. Os educadores podem fazer uma discussão do quanto a moral é uma construção cultural. 
 
Longe do humor, dois filmes realizados pelo cineasta e antropólogo Luiz Bolognesi tratam com muito cuidado e profundidade a questão indígena. Em Terra Vermelha (2008), dirigido pelo ítalo-chileno Marco Bechis (o roteiro é de Bolognesi, Bechis e Lara Fremder), estão presentes os conflitos de terra vividos pelos índios Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. O filme é uma ficção, baseada em fatos reais, com força talvez maior que de um documentário. Também é abordado o fenômeno do suicídio entre os indígenas Guarani Kaiowá. Em 2014, o líder Guarani Kaiowá Ambrósio Vilhalva, que interpreta o protagonista Nádio, foi assassinado. Luiz Bolognesi deu uma entrevista indignado com o silêncio da mídia sobre questões indígenas, acusando-a de cumplicidade no extermínio indígena, por omissão (a entrevista pode ser acessada no link).
 
O outro filme é a animação, voltada para jovens e adultos, Uma História de Amor e Fúria (2013), escrita e dirigida por Luiz Bolognesi. Este filme aborda alguns episódios da história do Brasil, sempre na perspectiva dos vencidos e a estrutura da história é baseada numa mitologia indígena. O personagem central, o índio Abeguar, atravessa todos os episódios, assumindo outros personagens que lutam o tempo inteiro contra Anhangá, o espírito do mal.
 
Para as crianças, há alguns filmes, como a série Tainá, que mostram uma visão ingênua sobre a cultura indígena, o que não impede dele ser exibido seguido de um debate. A mediação pode problematizar essa visão redutora que se tem sobre o tema e, sem precisar caracterizar os índios como heróis, mostrar o quanto os indígenas viviam (e, se puderem, ainda vivem) em absoluta integração com a natureza (no portal NET Educação, há sugestão de um plano de aula para o filme Tainá 3 – A Origem)
 
Um filme brasileiro recente que, infelizmente, predomina a perspectiva do branco e não do índio é Xingu, de Cao Hamburger. O filme conta a história dos Irmãos Vilas-Boas que viveram por muitos anos entre os índios e lutaram pela criação do Parque Nacional do Xingu. Talvez por querer resumir uma longa história, o filme peca por não se aprofundar no entrecruzamento das culturas que foi tão rico.  Mas ainda assim ele pode ser usado pelos educadores, pois traz a história dos três indigenistas e a mediação pode ajudar a desenvolver uma leitura crítica do audiovisual.
 
Um excelente documentário para se compreender a comunhão com a natureza e a herança que tivemos dessa cultura é o episódio Matriz Tupi, da obra O Povo Brasileiro, de Isa Grispum Ferraz, baseada na obra homônima de Darcy Ribeiro.
 
Os filmes citados de Jorge Bodanzky e de Luiz Bolognesi formam com o filme Serras da Desordem (Andrea Tonacci, 2006) disponível na internet um conjunto de títulos muito críticos que fogem do estereótipo do índio “puro, ingênuo ou bárbaro” e trazem uma discussão importante que é a hibridização das culturas. A imagem estereotipada que normalmente se vê mostra uma etnia parada no tempo, como se tivesse permanecido por séculos com os mesmos hábitos. Já nos filmes citados, há um olhar para a complexidade da condição indígena: além de  massacrados, os sobreviventes foram escravizados e forçosamente integrados à civilização branca, capitalista e urbana. A eles não sobrou outra alternativa a não ser se render ao modo de vida de seus opressores. Os índios ainda estão aqui em grande número, não somente nas reservas indígenas, mas também nas cidades e no trabalho dos campos, o que não significa que perderam sua identidade indígena.
 
A identidade cultural é construída de várias formas, não apenas na roupa, ou na falta dela. E se transforma o tempo todo. Ao mesmo tempo que esta visão “exótica” do índio ajuda a mantê-lo marginalizado na sociedade, há certo preconceito quando se vê um índio usando um telefone celular ou uma filmadora. Por quê? Várias tribos pelo Brasil afora têm usado a produção audiovisual como registro de sua cultura e como denúncia dos abusos que são cometidos contra sua etnia. Com o barateamento dos equipamentos audiovisuais, a produção audiovisual entre eles aumentou muito, sendo que já existem muitos cineastas indígenas consagrados. O site Vídeo nas Aldeias mostra essa produção.
 
Ainda, recentemente chegou aos cinemas O Abraço da Serpente, filme do diretor colombiano Ciro Guerra (2015). A produção colombiana/venezuelana/argentina foi indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Trata-se de uma ficção ousada e muito profunda, com fotografia em P&B, baseada na visita de dois pesquisadores brancos na selva amazônica, em momentos históricos diferentes. Mas a perspectiva do filme é a do índio e, mesmo que situe historicamente os eventos, trata de todo o processo de colonização e exploração dos últimos séculos, em todo o continente americano. Filme que merece ser visto e revisto.  
 
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Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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