O cinematógrafo, exibição pública da imagem em movimento, causou sensação em 1895, em Paris. A invenção dos Irmãos Lumière conseguiu realizar um sonho perseguido há muito pelos homens: o registro da imagem em movimento como se fosse real.

Nos primeiros tempos, o cinema apenas registrava acontecimentos, mostrava cenas da vida cotidiana, o que já era motivo de grande impacto. Apesar de serem apenas imagens estáticas, com a câmera parada, que mais pareciam um teatro, alguns espectadores precisavam de ajuda para compreender aquela nova forma de expressão. Para isso, havia, por exemplo, a figura do “explicador” que mediava a narrativa para que o público acompanhasse a história. Essa fase, que é chamada de “primeiro cinema”, durou aproximadamente 20 anos. As pessoas compreenderam, então, que o trem que chegava à estação não irromperia a tela¹ .

Uma figura importantíssima para o desenvolvimento criativo do primeiro cinema foi George Méliès, um ilusionista que inaugurou o cinema como experiência narrativa (uma história a ser contada e não apenas uma cena a ser mostrada). Dizem que Méliès descobriu a “edição” por acaso. Ele filmou o movimento de uma rua e só depois percebeu que a máquina havia falhado e ficara um tempo desligada. Quando ele revelou o filme, viu que, em virtude da falha do equipamento, um bonde se transformara em carro funerário; um homem que passava se transformara em uma mulher. Descobriu, então, que a interrupção permitiria “efeitos especiais”. Como ele era um homem do mundo dos espetáculos, desenvolveu o cinema a partir de “trucagens”, contando muitas histórias engraçadas e impactantes, contribuindo para a popularização do cinema.

A edição levou à montagem, isto é, as cenas não precisam ser filmadas na sequência em que serão exibidas. Após as filmagens elas são montadas de acordo com o ritmo que se quer imprimir, ou o suspense que se quer criar. Esses recursos criaram uma relação invisível de uma cena com a outra. Nesse momento, aproximadamente 1915, é que o cinema passou a ser considerado uma linguagem artística com características próprias: uma narrativa contada de um jeito diferente do teatro e da literatura. Para clarear essa descoberta, seguem-se alguns exemplos:

Um homem se arruma para ir trabalhar e despede-se de sua mulher. Assim que o homem sai, a mulher telefona para alguém. Há um corte. Aparece outro homem, com ar de satisfação, falando ao telefone. Novo corte. A mulher sorri. Novo corte. O homem fala novamente, desliga o telefone, pega a carteira e veste o paletó, demonstrando que vai sair.  Podemos perceber que são amantes e que, aproveitando a ausência do marido da moça, combinam um encontro. O que nos faz concluir isso é a sequência de cortes e a montagem. Essas cenas são estanques e independentes, mas a ordem com que foram exibidas cria, entre elas, um fio invisível, dando um sentido para o espectador.

Continuando: o marido chega ao ponto do ônibus e, após revirar os bolsos, percebe que está sem sua carteira. Volta para casa. Corte. Vemos a mulher se arrumando para receber o amante. Corte. O amante caminha em direção à casa dela. Criou-se uma narrativa de suspense, a partir de uma “montagem paralela”. Três cenas que estão acontecendo ao mesmo tempo, nos são exibidas de forma intercalada.

Com a edição e a montagem, recursos que caracterizam a especificidade do cinema, o tempo e o espaço são manipulados. O espectador acompanha entendendo a história como se tudo ocorresse ao mesmo tempo, no entanto, elas estão sendo apresentadas uma a uma. O espaço também não é real, mas construído. A montagem é que dá essa impressão de continuidade e paralelismo ao receptor.

O espectador, com o tempo, acaba assimilando²  e naturalizando essa relação entre as cenas e a forma como a narrativa está sendo apresentada, até porque o suspense – o marido descobrirá a traição da esposa? – se sobrepõe à reflexão sobre a linguagem em si.

Uma das características mais marcantes do cinema clássico que se firmou, especialmente nos Estados Unidos, é a montagem paralela, que é “naturalizada” pelo espectador. O que chamamos de “naturalismo” no cinema (termo emprestado das artes plásticas) é a situação do espectador mergulhar na narrativa como se ela fosse real, daí que rimos, sofremos, choramos e nos transformamos no cinema.

Outro exemplo comum do uso dos recursos audiovisuais no cinema clássico é a trilha sonora, usada para potencializar nossa emoção. O rapaz e a moça, apaixonados, foram afastados por algum motivo (intrigas, acidentes, fatalidades…). Mas é chegado o momento deles se reencontrarem e tudo leva a crer que eles seguirão juntos e apaixonados. A cena do reencontro tão esperado pelo espectador deve vir acompanhada por uma música, cujo volume aumenta no momento em que eles se abraçam.  O espectador tem certeza que não há uma orquestra em volta do casal, mas a música que potencializa o romantismo da cena já está incorporada em nosso imaginário. Se não houver a tal música, a cena, provavelmente, causará estranhamento no espectador do cinema clássico, que talvez não saiba explicar o motivo, mas dirá que o filme não é tão emocionante quanto pensara.
Algumas escolas de cinema, especialmente após a segunda guerra mundial, proporão uma quebra com esse cinema clássico e o uso da música será uma das regras a serem transgredidas, pois o que se espera, no cinema moderno, é uma reflexão sobre a forma da narrativa e não necessariamente o envolvimento do espectador, como se ele estivesse dentro do filme.

Outro recurso que nós naturalizamos a partir do cinema foi o uso do close (enquadramento da cena mostrando apenas o rosto, ou parte dele, do ator ou da atriz) para potencializar a emoção do personagem. No teatro, o ator não conta com esse recurso, portanto, desenvolve outras expressões (normalmente mais exageradas e de corpo inteiro) para transmitir a emoção que a peça exige do personagem. O cinema aproximou a câmera do ator, enquadrando seu rosto e nós, “naturalmente”, nos emocionamos muito mais com a história.

Outra influência do cinema clássico e de sua linguagem está nas nossas telenovelas, sobretudo na forma de narrar. A montagem paralela levando a um clima de suspense, assim como a música que potencializa as emoções e o close nos rostos dos personagens (às vezes, apenas nos olhos lacrimosos) são hoje totalmente assimiladas por milhões de telespectadores, não importa escolaridade ou conhecimento da gramática audiovisual. A publicidade também se formou a partir desse imaginário do cinema clássico.

 Ao longo dessa história de 125 anos da experiência do cinema, os recursos técnicos que enriquecem a linguagem cinematográfica foram sendo inventados, copiados e assimilados pelas plateias. Quando algum recurso novo era usado, causava um estranhamento, exigindo mais do espectador, logo o chamavam de “vanguarda”. Logo em seguida, a novidade era usada por outros cineastas e a plateia já o recebia com naturalidade. O cinema se reinventa a todo o tempo e a repetição de formas interage com a plateia, desenvolvendo, assim, uma competência para ver.

 A indústria cinematográfica dos EUA aprimorou-se no cinema clássico, pois aliou, como nenhuma outra, a arte ao entretenimento de massas. Como política de Estado, os EUA exportou seu cinema para boa parte do planeta, como parte estratégica de seu domínio econômico e cultural. A influência do cinema hollywoodiano em nossa vida é muito maior do que nos damos conta. Não apenas no culto aos mitos do cinema, na moda, nas canções, nos gêneros mais apreciados, mas no ritmo das cenas. Ao longo do tempo, a edição cada vez mais rápida e a montagem passaram a incorporar o cinema comercial mais popular, nos conduzindo a uma narrativa quase sem respiro, consequentemente sem muitas possibilidades de reflexão.  A história é sempre forte e dramática, de forma a se sobrepor à forma.

 Muitas vezes um filme que foge a essa lógica é rotulado de “lento”, “cansativo”, porque propõe cenas mais longas, cuja edição segue, propositadamente, outros parâmetros. O espectador desacostumou-se de refletir enquanto vê um filme. Mesmo nos filmes hollywoodianos antigos, como os do gênero western, muitas vezes um cowboy era mostrado vindo lá longe, em seu cavalo. A cena era demorada, sem muitos cortes. O espectador tinha um tempo para pensar e tentar adivinhar quem seria aquele forasteiro, o que sua chegada significaria à trama, seria ele do bem ou do mal?

É interessante que educadores conheçam mais sobre os recursos da linguagem audiovisual para trabalharem com seus alunos essa competência para ver que já está naturalizada em nossa prática cotidiana. A reflexão sobre a linguagem, além da história que o filme quer contar, aprimora ainda mais essa competência e nos faz espectadores mais críticos e sensíveis.

1. Um dos primeiros filmes exibidos pelos irmãos Lumière, em 1895, num café em Paris, mostrava um trem chegando na estação e muitas pessoas correram de susto. Martin Scorsese usa desse recurso no filme A Invenção de Hugo Cabret, provocando o mesmo estranhamento com a mesma cena do trem, porém, em 3D. Ele tenta provocar no público do século XXI o mesmo susto da exibição de 1895.

2. O termo assimilação é usado por Jean Piaget para explicar a construção do conhecimento. O primeiro contato de uma criança com uma nova experiência é de desequilíbrio, para depois haver a acomodação e a assimilação.

Profª Drª Cláudia Mogadouro

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Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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