Acompanho, com certo espanto, o recente e acalorado debate sobre a inclusão de questões de gênero na educação brasileira. Convido o leitor a olhar com atenção o conjunto de dados na tabela a seguir, para entender minha perplexidade.

    Fontes:
    1 e 2 – Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime – UNODC.
    3 – Transgender Europe – TGU
    4, 5, 6 e 7 – United Nations Development Programme – UNDP. 

O que se percebe é um panorama de dificuldades expressas em números muito ruins no Brasil. A superação destes desafios passa também pela educação (formal e informal). Sob o ponto de vista de justificativas gerais para ações educativas, vale também conhecer o “Manifesto pela igualdade de gênero na educação: por uma escola democrática, inclusiva e sem censuras”, assinado por diversos grupos de pesquisa, instituições científicas e de promoção de direitos civis. Neste documento, observa-se que:

Quando se reivindica, então, a noção de “igualdade de gênero” na educação, a demanda é por um sistema escolar inclusivo, que crie ações específicas de combate às discriminações e que não contribua para a reprodução das desigualdades que persistem em nossa sociedade. Falar em uma educação que promova a igualdade de gênero, entretanto, não significa anular as diferenças percebidas entre as pessoas (o que tem sido amplamente distorcido no debate público), mas garantir um espaço democrático onde tais diferenças não se desdobrem em desigualdades.

Na continuidade deste texto, destaco alguns pontos que se relacionam com a educação ligada à igualdade de gêneros e a influência da mídia. Esta é uma das abordagens da educação midiática a propósito do tema, salientando que os papéis de homem e mulher são elaborados pelas crianças e jovens a partir de instâncias de socialização, na qual observam e participam de atividades que transmitem valores e normas. 

Tradicionalmente, a família ocupa um lugar central nesta ação, porém os meios massivos assumem cada vez mais um papel bastante importante neste aspecto. De certo modo, a mídia atua como fonte de exposição a comportamentos, conteúdos e ideias, bem como “conselheira” – sendo que a internet é talvez hoje a principal fonte de informação sobre sexo, por exemplo, para os jovens.

É isso que faz, conforme o estudo de revisão de Stacey J. T. Hust e Jane D. Brown (“Gender, media use, and effects”, capítulo do livro The Handbook of Children, Media, and Development. Malden, Mass.: Blackwell, 2008), com que a análise do panorama oferecido pela mídia sobre “o que é” ser homem ou mulher seja relevante. Há uma preocupação dos estudiosos quanto a uma provável distorção da realidade, no plano das representações midiáticas, sobre os papéis de homens e mulheres. Tal ação pode limitar as aspirações e as expectativas das crianças, em função de sua categoria sexual.

As crianças percebem “padrões de gênero”, em atitudes e comportamentos tidos como aceitáveis, e procuram adaptar-se a eles. Os estereótipos estão fortemente vinculados a esses padrões. Um exemplo típico, reportado por Hust e Brown, é a observação de que crianças adotaram os esquemas de papéis sociais, nos quais a mulher era enfermeira e o homem era médico, que tinham visto num vídeo mostrado pouco antes. Os “padrões de gênero” relacionam-se às “identidades de gênero” elaboradas pelos indivíduos, e ambos, ciclicamente, reforçam-se, sendo incorporados nos comportamentos cotidianos e nas próprias representações.

Existem diferentes teorias para explicar como a exposição a conteúdos midiáticos tende a fazer com que os jovens desenvolvam esquemas, identidades e comportamentos de gênero. As pesquisas sobre o tema, sob qualquer enfoque, enfrentam a dificuldade de isolar os efeitos que podem ser atribuídos à mídia daqueles que provêm de outras instituições. Entretanto, tendo em vista que a mídia influencia a própria percepção sobre os papéis de gênero dos pais e colegas das crianças e jovens, Hust e Brown acreditam que a importância da mídia não pode ser negligenciada. A mídia afeta diferentes dimensões relacionadas ao gênero, entre outras, as crenças sobre atividades e ocupações; dominância, assertividade e agressividade; beleza física e padrões corporais; comportamentos e ideias sobre sexualidade.

Assim, a atividade de identificar estereótipos em diferentes tipos de mídia (TV, revistas, jornais, etc.) tornou-se comum entre os pesquisadores, mas também em certas ações pedagógicas que buscam questionar as representações estereotipadas e limitadoras. Estas práticas podem assumir, tanto um teor escolar, quanto consistirem em produções midiáticas de enfoque crítico e educativo – caso, por exemplo, dos documentários, do The Representation Project, The Mask You Live In (2015), e Miss Representation (2011 – há uma versão com legenda em português deste filme: aqui), que procuraram discutir, respectivamente, representações masculinas e femininas na mídia dos Estados Unidos. Naturalmente, as produções midiáticas podem ser, e são muitas vezes, utilizadas em ações na educação formal.

Enfim, ações de educação midiática são propostas como forma de atenuar possíveis malefícios da exposição à mídia em termos de gênero, assim como para potencializar eventuais aspectos positivos. O desafio principal, pelo fato de que a mídia tende geralmente a ser pouco integrada ou mesmo vista como de menor importância no contexto escolar, é tornar as ações pedagógicas nesta perspectiva significativas e duradouras.

Gostaria de concluir esse artigo, registrando agradecimento a Fernanda Castilho Santana, pós-doutoranda da ECA/USP, pela coleta e sistematização dos dados da tabela inicial, de área estudada por ela.

 

 

O Instituto Claro abre espaço para seus colunistas expressarem livremente suas opiniões. O conteúdo de seus artigos não necessariamente reflete o posicionamento do Instituto Claro sobre os assuntos tratados.

Autor Richard Romancini

Richard é doutor em Comunicação, pesquisador e professor do curso de pós-graduação lato-sensu em Educomunicação da ECA-USP.

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