O período da ditadura militar no Brasil durou 21 anos. Teve início no golpe civil militar (hoje se fala “golpe civil militar”) para que todos se lembrem que muitos civis apoiaram e sustentaram o golpe e a ditadura que se sucedeu. Em 1º de abril de 1964, o presidente João Goulart foi deposto e, dias depois, o Marechal Humberto Castelo Branco tomou a presidência da República. O término da ditadura é considerado o fim do mandato do presidente General João Batista Figueiredo, em 15 de março de 1985. Mas esse período não foi um bloco monolítico, 21 anos ininterruptos de torturas, perseguições, censura e prisões arbitrárias. Foi, sem dúvida, uma fase muito cruel da história do Brasil, mas é importante saber que houve fases mais ou menos duras, alternâncias e lutas internas. E durante todo esse período, houve resistência política: passeatas, pressões do poder legislativo, manifestações na imprensa, resistência armada, guerrilhas, canções de protesto, filmes e até telenovelas que faziam a crítica política nas entrelinhas. Mesmo entre os que participavam do governo, havia quem defendesse maiores ou menores liberdades. Portanto, foi um período muito complexo, em que houve uma tensão permanente. 

Para falarmos de censura no cinema na ditadura militar, é importante considerar pelo menos três fases distintas do período: a fase de resistência mais explícita, entre abril de 1964 e dezembro de 1968, quando se acreditava que a ditadura seria transitória. A fase chamada de “anos de chumbo”, após o decreto do Ato Institucional nº 5 (o famigerado AI-5) que vai do finalzinho de 1968 a 1974. E a fase final, chamada de “distensão”, que coincide com os governos dos generais Geisel e Figueiredo, portanto, de 1974 a 1985. O jornalista Elio Gaspari publicou um extenso estudo sobre o período, dividido em  volumes, em que ele batiza essas fases respectivamente de Ditadura Envergonhada, Ditadura Escancarada e Ditadura Encurralada.
 
Como já dissemos no artigo anterior (, sempre houve censura ao cinema no Brasil, mas nessa fase ela será muito importante e estruturada. É interessante observar como era composta a Comissão de Censura dos filmes. O Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), integrado ao Ministério da Justiça, situava-se em Brasília. Nessa época, era muito difícil conseguir atrair funcionários públicos para a longínqua capital, apesar dos muitos incentivos e vantagens funcionais oferecidas. Sem conseguir compor um quadro estável de censores, apelou-se para as transferências de funcionários de outros departamentos que, do dia para a noite, passaram a decidir o destino dos filmes e o que a população poderia ou não assistir. Segundo Inimá Simões: “foi assim que esposas de militares, classificadores do Departamento de Agropecuária do Ministério da Agricultura, ex-jogadores de futebol, contadores, apadrinhados ou meros conterrâneos de autoridades passaram a julgar os filmes nacionais e estrangeiros destinados ao circuito brasileiro”.
 
As peças dos processos de censura e suas justificativas para o corte de cenas ou impedimento de exibição poderiam constar no anedotário brasileiro. Seria cômico se não fosse trágico, porque análises irresponsáveis, que demonstravam muita ignorância sobre cinema, foram motivo de falência de muitas produtoras e de interrupção da carreira de diversos diretores. O cinema requer muito investimento e naquela época o filme dependia muito do desempenho da bilheteria. Às vezes, o filme não era impedido, mas era mutilado com tantos cortes, que se tornava incompreensível para o público. Outras vezes, um filme destinado a adolescentes era classificado como impróprio para 18 anos, inviabilizando-o comercialmente. 
 
Segundo Leonor Souza Pinto Leonor (organizadora do projeto Memória da Censura no Cinema Brasileiro), no início da ditadura militar, os princípios de censura eram de ordem moralista, apegando-se a situações de adultério e palavrões, mas aos poucos isso foi mudando, acrescentando motivos políticos aos princípios mais conservadores.
 
O Cinema Novo perseguido
 
A primeira fase, logo após o golpe, encontra o cinema brasileiro em uma fase muito profícua. Era o auge do Cinema Novo, que tinha se iniciado com Nelson Pereira dos Santos (Rio, 40 Graus, 1955, e Rio, Zona Norte, 1957). Nessa época, não era comum que as favelas e a população pobre entrassem na pauta do cinema. Influenciados pela proposta política do Neorrealismo Italiano e pela estética da Nouvelle Vague, surgem vários jovens cineastas que desejam buscar a identidade do Brasil por meio do cinema.
 
Eles entendiam o cinema como instrumento de ação política, conscientização e mobilização. A realização do filme com poucos recursos era uma opção ideológica. Segundo a frase de Paulo César Saraceni, só era preciso “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Os nomes mais representativos do Cinema Novo são Glauber Rocha, Carlos (Cacá) Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Leon Hirszman, David Neves e Paulo Cézar Saraceni. Pode-se dizer que Eduardo Coutinho, Walter Lima Júnior e Arnaldo Jabor compõem a segunda geração do Cinema Novo. Um dos nossos maiores cineastas, Nelson Pereira dos Santos, ativo até hoje, é considerado o precursor, mas não se alinha como um “cinemanovista”.
 
O clássico de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol (seu segundo longa metragem) estreou, em sessão reservada para amigos e críticos, no mesmo dia do famoso comício de João Goulart na Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Na última semana de março de 1964, Glauber Rocha leva para o Festival de Cannes seu filme – que já estava escolhido como representante oficial do Brasil – e, ainda, Ganga Zumba, de Cacá Diegues e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, como convidados, sem participarem da competição. Enquanto Glauber estava na Europa, Deus e o Diabo na Terra do Sol foi exibido em uma sessão exclusiva para militares que opinaram pela destruição imediata das cópias do filme. O prestígio internacional dos filmes brasileiros deixa os militares e os censores em situação delicada. Chamava muito a atenção impedirem a exibição de filmes que estavam sendo valorizados no exterior. Deus e o Diabo acabou sendo liberado, para maiores de 18 anos, apesar de ser considerado ruim por uma censora porque “mostra o desencanto dos pobres pela falta de caridade dos abastados” ou, por outro censor, que “mostra pobreza em demasia, não é aconselhável mostrar em cinemas estrangeiros, para não ridicularizar o país”. 
   
                                          
 
 
O filme Maioria Absoluta, um documentário de Leon Hirszman sobre o analfabetismo no Brasil, finalizado um pouco depois do golpe, teve sua cópia apreendida e foi impedido de ser exibido (só foi apresentado no Brasil, em 1980). Também sofreram com a censura os filmes O Desafio, de Paulo Cézar Saraceni, e O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro e Andrade, ambos de 1965. O primeiro trazia uma reflexão sobre a sociedade brasileira após o golpe do ano anterior. Ficou vários meses “no limbo” da censura (os censores não entendiam: “qual era o desafio que o filme propunha?”) e depois foi apresentado e muito apreciado no Festival de Cannes, de 1966. O Padre e a Moça é um filme delicado e lírico, baseado em um poema de Carlos Drummond de Andrade, com Paulo José e Helena Ignez. 
 
Após ser liberado para maiores de 18 anos, o chefe do SCDP pediu nova avaliação da censura, considerando as inúmeras queixas surgidas a este Serviço dirigidas por autoridades tanto civis como eclesiásticas, contra aludida película… (Simões, 1999:82). O primeiro censor a avaliar foi um padre que considerou o filme “ofensivo à moral e uma exaltação do amor livre”. Ao fim da nova avaliação, o filme foi liberado para maiores de 18 anos, com três cortes que deixavam o filme sem sentido. Joaquim Pedro de Andrade, então, pediu ao SCDP que reconsiderassem e classificassem o filme para maiores de 21 anos, sem cortes, o que foi aceito. Os cineastas preferiam negociar e às vezes até aceitavam os cortes, mas eles queriam que seus filmes fossem para as salas de cinema.
 
                               
 
Leon Hirszman ainda fez mais uma tentativa, realizando seu primeiro longa de ficção A Falecida, em 1965, com colaboração no roteiro de Eduardo Coutinho, baseado na peça teatral homônima de Nelson Rodrigues, com Fernanda Montenegro no papel principal. A censura, além de fazer uma série de críticas de ordem técnica, alegando maus enquadramentos, classifica o filme como impróprio para 18 anos, alegando “adultério da esposa e cinismo do marido traído”.
 
Não eram apenas os cineastas do Cinema Novo que sofriam censura. Walter Hugo Khouri e Luiz Sérgio Person, que realizavam filmes mais intimistas, também eram vistos como subversivos. 
 
Os anos de chumbo
 
A segunda fase da ditadura militar teve como marco o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, quando estava na presidência o duríssimo Costa e Silva. A partir dessa data, foram suspensos todos os direitos constitucionais e a repressão foi institucionalizada. A tortura tornou-se prática comum, assim como os desaparecimentos e assassinatos sumários. A censura tornou-se um dos grandes pilares de sustentação do regime militar, estendendo-se do cinema e teatro para toda a produção cultural do país, inclusive órgãos de informação, como imprensa e televisão. Acompanhando o acirramento da repressão, a censura torna-se paranoica, passando a enxergar em tudo o que é diálogo uma propaganda subliminar do comunismo. 
 
O longa El Justicero de Nelson Pereira dos Santos, de 1967, havia sido liberado com alguns cortes e seguia fazendo boa carreira comercial nas salas de exibição. Em 1969, sem qualquer amparo legal para a cassação do certificado de exibição, as cópias foram recolhidas e os negativos sequestrados, o que significava a destruição física do filme. A truculência das autoridades policiais entrando em produtoras e laboratórios para eliminar o filme foi tal que, por medida de segurança, os cineastas passaram a despachar uma cópia para o exterior sempre que finalizavam um filme, antes de ser submetido à censura. 
 
O cineasta baiano Olney São Paulo, amigo e compadre de Nelson Pereira dos Santos, já havia submetido seu primeiro longa O Grito da Terra (1964) à censura, sofrendo cortes. Quando realizou o documentário Manhã Cinzenta (1969), sobre movimentos populares de rua, nem quis obter permissão dos órgãos oficiais. Simplesmente disponibilizou as cópias para cinematecas e cineclubes, para exibirem seu filme em circuitos alternativos (essas salas não eram fiscalizadas). No dia 8 de outubro de 1969, um avião brasileiro é sequestrado pelo Movimento 8 de Outubro (MR-8) e desviado para Cuba. Um dos sequestradores era dirigente de um cineclube e exibiu, em pleno voo, o filme Manhã Cinzenta. A repressão acreditou que o cineasta estava ligado ao sequestro. Olney foi preso e torturado, adoecendo muito. Ele foi absolvido do caso em 1972. Sua saúde ficou debilitada até o fim de sua vida. Ele morreu em 1978, aos 41 anos.
 
Novamente Leon Hirszman, um dos nossos maiores cineastas, faz um filme, em 1972, que é considerado uma de nossas obras primas do cinema: São Bernardo, adaptação do romance de Graciliano Ramos, com interpretação primorosa de Othon Bastos, como protagonista. O livro já era adotado pelas escolas como um clássico da literatura. Além dos aspectos estético-artísticos, Hirszman tinha todo interesse que seu filme fosse visto por estudantes. A censura exigiu cortes de cenas importantíssimas e classificou como permitido para maiores de 18 anos. O cineasta recorreu. O processo durou sete meses e só pôde ser lançado no circuito comercial um ano e meio depois de terminado, o que resultou na falência da produtora. Apesar de inúmeros prêmios e reconhecimento internacional, o cineasta só voltou a dirigir um longa metragem nove anos depois, com o premiadíssimo Eles não usam Black-tie (1981, que recebeu muitos prêmios, entre eles o Leão de Ouro no Festival de Veneza).
   
                                    
 
No próximo artigo, abordaremos a censura no cinema na fase de distensão do Regime Militar e a onda das pornochanchadas. 
 
Referências Bibliográficas
 
COUTO, José Geraldo. Réquiem pelo Cinema Novo, disponível em http://www.blogdoims.com.br/ims/requiem-pelo-cinema-novo/
 
LIMBERTO, Andréa e REIS Júnior, Antônio. Censura à imagem em movimento: interdição, resistência e negociação de sentido. In: COSTA, C (org.) Comunicação, Mídias e Liberdade de Expressão, São Paulo: Intercom, 2013
 
PINTO, Leonor S. Cinema Brasileiro e Censura durante a ditadura militar, disponível em http://www.memoriacinebr.com.br/
 
SIMÕES, Inimá. Roteiro da Intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: SENAC, 1999.
 

 

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Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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