Não é de hoje que profissionais da educação, políticos e gestores entenderam e entendem que o direito à educação era e é um caminho para o desenvolvimento da cidadania. A educação seria um dos caminhos privilegiados para que os sujeitos fossem membros partícipes da sociedade e capazes de serem membros do Estado. Entretanto, ao reconhecimento desse valor não houve correspondente empenho em torná-lo efetivo. Eis porque o direito à educação no Brasil foi tão tardio.

Se o direito à educação foi reconhecido na Constituição do Império para os cidadãos, excluindo escravos e outros grupos, se ele compareceu às Constituições Estaduais após a proclamação da República (que ignorou a gratuidade posta na Constituição Imperial), sua dimensão nacional para todos, no então denominado ensino primário, só foi inscrito como tal na Constituição de 1934.

Na mobilização pela inserção desse direito na Constituição, duas realidades se tornaram importantes como fatores de tomada de consciência: as estatísticas do país em comparação com a Argentina, Uruguai e Chile, que nos colocavam em posição vergonhosa, dado o minúsculo acesso das crianças em idade escolar, e o processo de urbanização e industrialização. E a pergunta-chave foi: como retirar o país desse “atraso” ?

A resposta não tardou. Era preciso inserir a educação como direito de todos e obrigação dos poderes públicos, torná-la obrigatória e gratuita. Mas com que meios? Os anos 1920 e 1930 tinham como palavra de ordem o planejamento, seja pela via keynesiana, seja pela via socialista. Era preciso um Plano de Educação, de caráter nacional, com metas a serem atingidas. Seria o antídoto contra iniciativas dispersivas e contraditórias.

Vinculação a recursos

Entrementes, um Plano, afora a radiografia da situação (em que “pé” nos encontramos), afora metas a serem atingidas (onde queremos chegar dentro de um intervalo de tempo), necessita de meios. Assim, em 1934, a Constituição, de modo originalíssimo, incluiu como uma ferramenta indispensável para o Plano – a vinculação de impostos de cujo percentual constituir-se-ia um fundo nacional, estadual e municipal para dar conta da efetivação desse direito proclamado.

A partir daí, todas as Constituições proclamadas incluíram em seu texto esse dispositivo e todas as Constituições outorgadas desfizeram esse vínculo. O Plano Nacional de Educação de 1936 perdeu-se no golpe de 1937, o Plano de 1962 foi tragado pela ditadura de 1964. E o Plano de 2001-2011 ficou incompleto porque a ele se justapôs um veto ao financiamento que aumentava os recursos para dar conta da ampliação do acesso, da valorização do magistério e da qualificação das etapas escolares.

Ora, ao fracasso desses Planos, de novo, profissionais da educação, gestores e políticos entenderam que o mandato constitucional do artigo 214 da Constituição não poderia ficar, mais uma vez, inócuo. Daí que, a partir de 2011, vencido (e mutilado) o anterior, era preciso um outro Plano “empurrado” por grande mobilização. Os municípios foram convocados junto com os estados e suas respectivas populações a participarem de debates com sugestões a partir de um projeto advindo da União.

O mesmo ocorreu com associações profissionais, científicas e organizações da sociedade civil. Essa mobilização fazia jus ao mandado da emenda constitucional 59/2009 que, entre outras disposições, ampliava a obrigatoriedade escolar dos 4 aos 17 anos com um apoio financeiro progressivo, tendo como referência um porcentual do Produto Interno Bruto. O Plano, objeto da lei n. 13.005/2014, foi saudado e comemorado pelo Plenário da Câmara como um real resgate da educação nacional que, doravante, inclusive faria melhor figura nos índices de desempenho.

Garantias vetadas

Pois bem, esse Plano, objeto de tanta participação, algo que possibilitaria uma adesão consciente da parte de quem faz a educação no dia a dia, está hoje fadado a um fracasso similar e mais grave do que ocorreu em 2001: omissão quanto ao financiamento, o que impossibilita o atendimento das metas da educação obrigatória e restrições de variada ordem com relação ao direito à diferença.

Com efeito, se a emenda 95/2016 congela os investimentos em favor de um severo regime fiscal atingindo de morte os recursos para a educação, as ameaças de uma desvinculação de recursos constitucionalmente obrigatórios advêm de orientações do documento do Banco Mundial (“Um ajuste justo”…), de uma proposta do MDB (“Uma ponte para o futuro” …) e de uma decisão do Congresso homologando um veto da Presidência à lei nº 13.473/17 (Lei das Diretrizes Orçamentárias). Esse veto dispõe ser o Custo-Aluno-Qualidade inicial (CAQi) – dimensão claramente posta na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional –, um óbice ao alcance da meta fiscal.

Se tal dimensão, voltada para insumos pedagógicos básicos para o exercício da docência e dignidade dos estabelecimentos escolares, é objeto de veto presidencial secundado por quem aprovara o Plano, imaginem-se outras dimensões mais qualitativas. Ao lado disso, não se pode deixar de apontar os seguidos ataques à diversidade e à laicidade e os preconceitos com relação ao conhecimento científico próprio de todas as ciências, aí compreendidas as ciências humanas e sociais.

Pontes para o futuro se constroem no presente pela efetivação de direitos e não por sua desconstrução, tal como afirmava Pontes de Miranda. A omissão no investimento em educação, esquecido e secundarizado pelos atuais governantes, é mais do que um ajuste injusto, é um retrocesso de direitos. É um claro convite a mais um desalento para os que se mobilizaram pela efetivação da educação como direito de todos e dever do Estado.

Com Direto da Ciência

Crédito da imagem: Marcos Oliveira/Agência Senado

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Autor Carlos Roberto Jamil Cury

Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

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