O Egito Antigo costuma aparecer nos livros didáticos de história no sexto ano do ensino fundamental e na primeira série do ensino médio, geralmente em capítulos curtos ou subcapítulos, junto a outras civilizações como sumérios, acádios, babilônicos e assírios.

“As narrativas focam principalmente na formação do Estado egípcio, isto é, na unificação do Alto e do Baixo Egito; na figura do faraó; na economia e na importância político-econômica do rio Nilo; na chamada ciência dos egípcios; e em elementos considerados ‘exóticos’ por sua diferença em relação à nossa sociedade, como deuses zooantropomorfos, múmias e pirâmides”, resume o doutorando em História Antiga – Egiptologia pela Universidade de Lisboa (Portugal) Victor Braga Gurgel.

Apesar da preocupação em destacar a importância do Egito Antigo para a humanidade, o recorte é resumido e apresenta problemáticas, como aponta o mestre em História Contemporânea pela Universidade do Porto (Portugal) Paulo Vasconcelos.

“Ele é baseado em narrativas tradicionais de caráter eurocêntrico, que destacam o Nilo como elemento central e tratam o Egito de forma quase isolada, sem contextualizá-lo como parte do continente africano”, relata.

Complementando informações

Professora da pós-graduação em História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Priscilla Gontijo Leite lembra que uma das características do livro didático é justamente ser sintético, exigindo que o professor elabore seus próprios materiais e faça complementações.

“No caso do Egito, é importante uma aula que alinhe textos literários e cultura material, trazendo elementos da arqueologia e da antropologia, também refletindo sobre a história da África e sua conexão com o que hoje chamamos de Europa e Oriente”, esclarece.

Para Vasconcelos, o ensino do Egito Antigo pode ser uma oportunidade para problematizar com os alunos como a história é narrada. “Não se trata apenas de falar do Egito em si, mas de estimular uma postura crítica diante das fontes e representações, ensinando a questionar quem conta essa história, o que ficou de fora e por quê”.

A seguir, os pesquisadores apontam problemáticas presentes nos livros didáticos sobre o Egito Antigo e como o professor pode esclarecê-las:

1) Exclusão de como vivia quem não era da elite

Leite explica que os livros didáticos não costumam trabalhar elementos da cultura material além das múmias e funerais da elite, geralmente apresentados apenas como ilustrações.

Contra isso, o professor pode trazer mais elementos da arqueologia e da egiptologia. “Por exemplo, como viviam as camadas populares por meio da Sátira das Profissões, que mostra a vida dos trabalhadores”, ensina Leite. “Isso faz o aluno questionar que todas as obras incríveis do Egito demandaram trabalho humano, embora haja menos vestígios de cemitérios de populares”, complementa.

2) Narrativas sem base acadêmica

Em pesquisa com livros didáticos de escolas públicas de João Pessoa (PB) e região metropolitana, Gurgel identificou narrativas sem base acadêmica, como a afirmação de que há uma estrutura subterrânea sob a Esfinge de Gizé e que os corpos humanos eram mumificados para serem ressuscitados.

“Isso pode cristalizar no estudante uma visão do Egito Antigo como uma civilização fantástica, fora dos padrões humanos ordinários, o que não é verdadeiro”, alerta Gurgel.

3) ‘Egitomania’

Egitomania é um termo que diz respeito a como o Egito é utilizado no cotidiano, principalmente pela indústria cultural, geralmente sem embasamento histórico. “A escola é, não raro, o primeiro e único contato formal do estudante com o Egito Antigo. Após isso, é provável que a conexão com essa antiga civilização se dê por meio de filmes, séries, quadrinhos, entre outros. Essas representações são importantes, mas não exigem compromisso com fontes históricas, sendo frequentemente interpretações fantasiosas do passado”, avalia Gurgel.

Porém, ele indica utilizar essas narrativas como ponto de partida para as aulas de história.

“Pergunte aos alunos o que sabem sobre o povo egípcio, registrando as respostas para promover uma reflexão crítica. Se surgir a ideia da ‘maldição da múmia’, discuta o papel da mumificação, trazendo o relato de Heródoto sobre o processo e explicando a função social dos mortos. As pessoas buscavam manter vínculos com seus entes queridos por meio de cultos e cartas com pedidos de intercessão. Depois, aborde a múmia de Tutancâmon e mostre como a suposta maldição foi criada pela imprensa do início do século XX e explorada pelo cinema de Hollywood”, orienta Gurgel.

4) Exclusão dos Períodos Intermediários

Segundo Gurgel, esses foram momentos de descentralização política e econômica no Egito Antigo, mas onde ocorreram mudanças profundas. “O principal problema da ausência desses períodos é criar uma imagem estática, de que o governo dos faraós foi pacífico e sem Reveses”, destaca Leite. Houve três períodos intermediários:

 

Primeiro Período Intermediário (c. 2134-2010 a.C.): governadores locais (nomarcas) autodeclararam-se faraós e lutaram pelo poder, até a reunificação do Egito por Mentuhotep II (2061-2010 a.C.), faraó do sul que instalou a capital em Tebas.

Segundo Período Intermediário (1640–1550 a.C.): o Egito ficou dividido, com os hicsos, de origem semita, governando o norte a partir de Avaris e aliados aos núbios de Kerma. No sul, em Tebas, a dinastia local iniciou a retomada do poder com o rei Seqenenré, processo concluído por seu sucessor Kahmose.

Terceiro Período Intermediário (1070-712 a.C.): o sacerdócio de Amon, em Tebas, ganhou força política, reduzindo o protagonismo do faraó. Além disso, o Egito foi governado em diferentes momentos por povos estrangeiros, como líbios e núbios.

“Aponte brevemente a existência desses períodos e algumas mudanças ocorridas, como a introdução do cavalo pelos hicsos após o país já existir há um milênio. Pode-se questionar a turma sobre o meio de transporte de bens e pessoas mais utilizado antes do cavalo, que era o asno. É comum os alunos mencionarem o camelo, introduzido apenas no Período Ptolemaico (305-30 a.C.)”, diz Gurgel.

5) Queda do império devido à falta de cheias do rio Nilo

“Isso retira dos seres humanos, que são agentes políticos, o protagonismo nas mudanças”, afirma Gurgel. “A seca influenciou o cenário político, mas o acúmulo de poder dos governadores locais (nomarcas), cada vez mais independentes do poder central do faraó, foi determinante para as transformações”, complementa.

6) Egito como período estático

Segundo Leite, os livros não apresentam o Egito como um espaço continuamente ocupado ao longo dos milênios.

“O Egito Antigo, com sua milenar civilização, passou por mudanças e teve de criar soluções para desafios”, explica Gurgel. “Pode-se apresentar transformações na arte, arquitetura e moda, como o delineado dos olhos (kohl), usado de formas diferentes nos Reinos Antigo e Novo. A estatuária de deuses e pessoas também mudou, mesclando influências egípcias e gregas no Reino Novo e no Período Ptolemaico”, exemplifica.

7) Egito sem relação com a África

Em sua pesquisa sobre a representação do Egito Antigo nos livros didáticos brasileiros e portugueses (2020), Vasconcelos identificou que a civilização era apresentada apenas como “do rio Nilo”, excluindo sua essência africana e as trocas culturais, políticas e comerciais com outras sociedades do continente, como Núbia e Etiópia.

“Essas omissões reforçam uma visão que coloca a Europa como centro de referência e invisibiliza a contribuição africana para a humanidade, levando os estudantes a compreenderem o Egito como ‘exceção’ dentro da África, desvinculado do continente”, enfatiza Vasconcelos. “Isso cria um ‘Oriente’ idealizado, frequentemente associado ao Mediterrâneo ou à Ásia, reforçando preconceitos históricos sobre a África como ‘sem história’ ou ‘sem civilizações complexas’”.

8) Ausência de debates sobre raça e etnia

Segundo Vasconcelos, os livros trazem imagens de faraós ou elites padronizadas esteticamente. “O Egito Antigo, como qualquer sociedade, era diverso e marcado por contatos interculturais. Esse silêncio oculta a complexidade social e étnica, perpetuando a ideia de uma civilização homogênea e distante de questões africanas e raciais, o que pode reforçar estereótipos racistas”, pondera.

O professor pode discutir como a imagem do Egito foi apropriada em diferentes épocas. “Por exemplo, analisando como o cinema de Hollywood representou os egípcios quase sempre com atores brancos”, finaliza.

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Crédito da imagem: mantaphoto – Getty Images

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