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O livro “Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá”, de Lima Barreto, está entre as obras obrigatórias do vestibular da Unicamp em 2025. Nela, o autor rompe com as convenções do realismo do século XIX que ainda imperavam nos romances daquela época.

Narrado por Augusto Machado, um funcionário público negro, o livro tece a biografia do personagem Gonzaga de Sá. Por meio dela, transparece o comportamento da alta sociedade do Rio de Janeiro do começo do século XX, além dos diversos problemas sociais que afligiam o próprio Lima Barreto.

“O Lima Barreto é e sempre foi um autor considerado periférico. Um homem que viveu nos subúrbios do Rio de Janeiro [RJ], que sempre se sentiu vítima de preconceito étnico, sempre se achou desprezado pelos seus colegas e sempre lutou muito contra o privilégio de determinados autores brancos, muitas vezes no julgamento dele, sem tanto talento, sem tanta coisa a dizer. Sendo assim, é compreensível que o principal tema de sua obra seja a denúncia do preconceito racial e a luta por um consequente reconhecimento social”, resume o professor de literatura brasileira do Sistema Anglo de Ensino Maurício Soares Filho.

Nesse podcast, Soares Filho traz dicas para quem está se preparando para o vestibular e aponta possíveis abordagens que podem ser feitas no exame.

“O que me parece que o Lima Barreto contribui muito claramente na leitura, na formação de um jovem leitor, num processo de desmontar as origens dos preconceitos. Ao investigarmos e compreendermos os movimentos em torno desse processo, que aqui nesse caso envolvem principalmente uma esperada modernização do Rio de Janeiro nessa passagem do Império para a República. E a abolição da escravatura, quer dizer, olhar para isso numa tentativa de compreender como chegamos até aqui, como chegamos nesse Brasil racista, machista, classista, em que ainda estamos no século XXI”, explica.

Precursor do Modernismo

Outro aspecto da obra que pode ser tema no vestibular da Unicamp, segundo Maurício soares Filho, é o fato de o livro não se enquadrar em um único gênero literário. Para o professor, ao ser publicado em 1919, a obra antecipa uma das características do Modernismo de 1922.

“Nós sabemos que o livro se chama “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”, e esse título sugere uma biografia. Acontece que os próprios interlocutores acabam entendendo que poderia ser um romance, uma vez que o próprio biógrafo acaba aparecendo, muitas vezes, mais do que o biografado. Quando nós percebemos que os doze capítulos são mais episódicos do que lineares, quase independentes, e poderiam até mudar de lugar dentro da organização do livro, a gente cogita chamar essa obra de um livro de contos. E considerando o fato de o enredo, dos acontecimentos serem menos relevantes ou considerados com menos importância, menos ênfase do que as reflexões propostas pelo autor, aí talvez pudéssemos dizer que, na verdade, estamos diante de um livro de ensaios”, contextualiza.

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Crédito da imagem: Augusto Malta – Acervo da Light

Transcrição do Áudio

Música: Introdução de “O Futuro que me Alcance”, de Reynaldo Bessa, fica de fundo

Maurício Soares Filho:

O Lima Barreto é e sempre foi um autor considerado periférico. Um homem que viveu nos subúrbios do Rio de Janeiro, que sempre se sentiu vítima de preconceito étnico, sempre se achou desprezado pelos seus colegas e sempre lutou muito contra o privilégio de determinados autores brancos, muitas vezes no julgamento dele, sem tanto talento, sem tanta coisa a dizer.

Sendo assim, é compreensível que o principal tema de sua obra seja a denúncia do preconceito racial e a luta por um consequente reconhecimento social.

Meu nome é Maurício Soares filho. Eu sou um apaixonado por literatura, que dá aula no Sistema Anglo de Ensino e que também faz o seu material didático. Sou mestre em literatura brasileira pela FFLCH-USP.

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Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:

O livro “Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá” traz um retrato do Rio de Janeiro do século XX. Por meio dessa obra, Lima Barreto aborda um cenário repleto de problemas sociais, uma das marcas da literatura do escritor.

Maurício Soares Filho:

O cenário do seu trabalho são sempre os subúrbios cariocas, o que também localiza a obra dele dentro de um determinado nicho muito claro. Os personagens mais importantes são sempre indivíduos marginalizados nesse processo de urbanização da cidade do Rio. Então, falar sobre o Lima Barreto e sobre a sua literatura é falar sobre o Rio de Janeiro numa perspectiva um pouco diferente daquela que nós estamos acostumados a ver retratada no romance, por exemplo, de Machado de Assis ou dos romances urbanos de José de Alencar. Quer dizer, o Lima Barreto tem um olhar especial para o Rio e um olhar que vem do ponto de vista de um homem periférico, vítima de preconceito, interessado em desvendar esse processo de transformação tão intenso pelo qual o Rio de Janeiro passou no momento em que o Lima viveu.

Marcelo Abud:

O livro foi publicado em 1919. O contexto é marcado pela Proclamação da República e pela abolição do trabalho escravo, ocorridas cerca de duas décadas antes. De acordo com o professor, isso pode ser um ponto de atenção para a Unicamp, que inclui o livro em sua lista obrigatória a partir do vestibular para 2025.

Maurício Soares Filho:

O que me parece que o Lima Barreto contribui muito claramente na leitura de um jovem, enfim, na formação de um jovem leitor é num processo de desmontar as origens dos preconceitos, né? Ao investigarmos e compreendermos os movimentos em torno desse processo, que aqui, nesse caso, envolvem principalmente uma esperada modernização do Rio de Janeiro nessa passagem do Império pra República; e a abolição da escravatura, quer dizer, olhar para isso numa tentativa de compreender como que chegamos até aqui, como chegamos nesse Brasil racista, machista, classista, em que ainda estamos no século XXI.

E isso torna a presença dessa obra numa lista de leitura obrigatória muito relevante, porque realmente esse é o processo. Aliás, não só dessa leitura, mas da educação, não é? Tentar sentar com uma galera na sua frente e discutir isso. Espera aí, como nós chegamos aqui? Da onde vem o preconceito? Como isso aconteceu lá nas nossas origens historicamente? Como as pessoas se sentiam em torno dessa situação? Acho que a cara da Unicamp discutir isso.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:

“Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá” começa com uma pequena advertência de quatro parágrafos, assinada pelo próprio Lima Barreto. Nela, o autor afirma ter sido encarregado de publicar uma pequena obra que teria recebido de um colega. É desta forma que apresenta a quem lê o narrador Augusto Machado.

Maurício Soares Filho:

Augusto Machado é o narrador desta obra, e é ele que se propõe a escrever a biografia de M. J. Gonzaga de Sá, que é um funcionário público branco, filho de um general titular do exército. Um cara muito bem-informado, de aproximadamente 60 anos, que fez carreira no serviço público.

Interessante porque o Augusto Machado, que também é funcionário público, mas é negro, que tem uma origem humilde e que também é bem-informado, tem apenas 20 anos de idade. A gente entende que esse olhar coloca em perspectiva diferentes idades e, portanto, experiências, diferentes etnias, uma vez que um é negro e outro é branco, e diferentes origens. Mas mantém entre essas duas vozes principais do livro uma correlação, que é o funcionalismo público, de funcionários, muitas vezes, tão preocupados com minúcias e tão pouco eficientes nas suas ações.

Marcelo Abud:

O professor acredita que este aspecto também pode ser destacado pelo vestibular. Ele seleciona e lê um trecho em que a crítica a esse funcionalismo burocrático está presente.

Maurício Soares Filho:

Eu escolhi um trecho em que o Xisto Beldroegas, que era um funcionário público, é apresentado aqui pelo narrador. Veja só.

Som de página de livro sendo virada

Maurício Soares Filho:

Beldroegas não podia compreender que o número de dias que chove no ano não pudesse ser fixado. E se ainda não estava em aviso ou portaria, era porque o Congresso e os ministros não prestavam. Se fosse ele, o movimento dos astros, o crescimento das plantas, as combinações químicas, toda a natureza, no seu entender, era governada por avisos, portarias e decreto, emanados de certos congressos, ministros e outras espécies de governantes que tinham existido há muito tempo.

Não acreditava que outras vontades ou forças mais poderosas do que os dos membros ostensivos do poder político governassem. Eram eles, só eles, o voto. Tolice!

Som de página sendo virada

Marcelo Abud:

Outro aspecto da obra que pode ser tema no vestibular da Unicamp, segundo Maurício soares Filho, é o fato do livro não se enquadrar em um único gênero literário.

Maurício Soares Filho:

Nós sabemos que o livro se chama “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” e esse título sugere uma biografia, como também é dito no início, tanto na advertência como na explicação necessária. Acontece que os próprios interlocutores acabam entendendo que poderia ser um romance, uma vez que o próprio biógrafo acaba aparecendo mais muitas vezes do que o biografado. Então, talvez não pudéssemos chamar isso de biografia. Quando nós percebemos que os doze capítulos são mais episódicos do que lineares, quase independentes, e poderiam até mudar de lugar dentro da organização do livro, a gente cogita chamar essa obra de um livro de contos. Não fossem eles completamente conectados pelo diálogo entre os personagens, pelo cenário do Rio de Janeiro, talvez fosse possível chamar contos. E considerando o fato do enredo, dos acontecimentos serem menos relevantes ou considerados com menos importância, menos ênfase do que as reflexões propostas pelo autor, aí talvez pudéssemos dizer que, na verdade, estamos diante de um livro de ensaios.

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:

Para o professor Maurício Soares Filho, a escolha por um narrador negro permite um ponto de vista incomum sobre o comportamento da aristocracia carioca do começo do século XX.

Marcelo Abud para o Livro Aberto, do Instituto Claro.

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