Não existe legislação específica que criminalize a discriminação ou o preconceito contra a pessoa gorda, chamado de gordofobia; ainda que aproximadamente 85,3% das pessoas com obesidade relatem ter passado por constrangimentos devido ao peso, segundo o estudo “Obesidade e Gordofobia — Percepções 2022”, da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso).

Porém, a advogada fundadora do projeto “Gorda na Lei”, Rayane Souza, explica que tais situações podem ser enquadradas em mecanismos jurídicos já existentes.

“É possível enquadrar casos de gordofobia por meio de analogias com normas já previstas no ordenamento jurídico, como injúria, assédio moral e uso indevido de imagem”, orienta.

Ela explica que a gordofobia se manifesta de diferentes formas. “A primeira é a gordofobia social, que envolve chacotas, bullying e piadas sobre corpos gordos — situações que a maioria das pessoas gordas enfrenta em algum momento da vida.”

Além disso, há a gordofobia estrutural, que impede a pessoa com obesidade de viver plenamente. “No ambiente de trabalho, por exemplo, não há uniformes adequados, e as cadeiras não suportam o peso. Equipamentos médicos não são adaptados, e até exames, como a ressonância magnética, podem ser inviabilizados por falta de estrutura adequada”, contextualiza.

Projetos parados 

Apesar de o tema ser amplamente discutido em todo o mundo, a criminalização da gordofobia ocorre apenas nos Estados Unidos, no estado de Michigan e em cidades como Madison e São Francisco.

No Brasil, tramitam no Congresso Nacional alguns projetos de lei sobre o assunto, como o PL 1786/22, que propõe incluir a gordofobia na Lei nº 7.716/89 — a mesma que define os crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Souza explica que diversos estados e municípios também possuem projetos de lei, mas a maioria das propostas legislativas está parada.

“Para que leis e políticas aconteçam, é preciso primeiro reconhecer essa dor e compreender que ela afeta o direito básico de viver com dignidade. Porém, muitas pessoas não percebem que a sociedade exclui e oprime corpos que fogem do padrão considerado ‘normal’”, analisa.

Ela ressalta que, embora a Constituição assegure igualdade e direitos fundamentais — como saúde e trabalho —, na prática esses princípios nem sempre se aplicam a corpos dissidentes. “O corpo gordo é constantemente julgado, ridicularizado e desumanizado, como se a obesidade fosse apenas falta de força de vontade, mesmo sendo uma condição multifatorial, muitas vezes independente da escolha individual”, relembra.

“Fala-se muito sobre prevenção da obesidade e de doenças crônicas, mas o que fazemos com essas pessoas que ainda existem e estão por aqui? Muitas não conseguem passar na catraca, comprar roupas adequadas devido ao preço, ter acesso a uma alimentação saudável. É um sistema que cria barreiras e ainda culpa as pessoas”, analisa.

Para a advogada, o cenário atual é menos favorável à aprovação de leis sobre gordofobia do que há alguns anos, devido à falta de apoio político e popular. “Acredito que isso se deve à popularização dos medicamentos injetáveis usados para o tratamento do diabetes tipo 2 e também para o controle de peso. Esse fenômeno reacendeu a cultura do corpo magro a qualquer custo”, avalia.

Luta por direitos

Como não há legislação específica contra a gordofobia, a luta por justiça é difícil. “Existem formas de enquadrar casos, mas o reconhecimento do ato ainda é limitado. Falta regulamentação federal e sensibilização do Judiciário. Tudo é mais difícil, mas o convencimento vem da insistência”, afirma Souza.

Foi com esse propósito que ela criou o projeto “Gorda na Lei”, que oferece orientação jurídica e conscientização sobre direitos. “O projeto nasceu dessa lacuna de informação. Muitas pessoas gordas não sabem o que podem exigir legalmente. Conhecimento é poder: quando você entende seus direitos, se fortalece”, opina.

“Além disso, a terapia e o apoio psicológico devem caminhar junto com a conscientização jurídica, porque a gordofobia causa sofrimento e pode levar à depressão”, enfatiza.

A seguir, ela aponta quatro direitos que a pessoa gorda pode reivindicar por meio de mecanismos jurídicos já existentes.

1) Direito de não sofrer discriminação verbal

Casos de chacotas, xingamentos ou bullying podem ser enquadrados como crime de injúria (artigo 140 do Código Penal).

“Para configurar esse crime, é necessário que a vítima se sinta ofendida. Nem sempre o simples fato de ser chamada de ‘gorda’ é suficiente juridicamente, mas ofensas vexatórias e humilhantes podem ser punidas”, diferencia a advogada.

2) Uso indevido da imagem

É comum que imagens de pessoas gordas sejam utilizadas em memes ou conteúdos vexatórios. “Nesses casos, cabe processo por danos morais. Isso também vale para o uso da imagem com fins comerciais, como memes de ‘antes e depois da ceia de Natal’ feitos por nutricionistas, por exemplo”, pontua.

3) Direito a um ambiente de trabalho sem discriminação

A gordofobia no ambiente de trabalho pode ser caracterizada como assédio moral (Lei 14.457/22). “No Brasil, a maioria dos casos de gordofobia é julgada na esfera trabalhista, com condenações que variam de indenizações simbólicas a valores mais altos, conforme a gravidade”, explica.

Ela cita exemplos reais: uma funcionária que foi impedida de ligar o ar-condicionado porque o patrão dizia que ela sentia calor por ser gorda; outra que teve o bônus de fim de ano condicionado à perda de peso, sendo obrigada a se pesar diante dos colegas.

4) Direito a atendimento médico digno

A gordofobia na área da saúde pode ser enquadrada em diferentes dispositivos jurídicos. O artigo 5º da Constituição Federal garante a igualdade de todos perante a lei e proíbe qualquer forma de discriminação — assim, negar atendimento digno ou tratar alguém de forma vexatória fere o princípio da dignidade da pessoa humana.

Já o Código Civil prevê indenização por danos morais quando a vítima sofre humilhação, constrangimento ou discriminação em atendimentos médicos. Além disso, o Código de Defesa do Consumidor garante que hospitais, clínicas e planos de saúde podem ser responsabilizados por falhas na prestação de serviço em casos de discriminação, cabendo pedido de reparação.

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Crédito da imagem: ridvan_celik – Getty Images

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