A pandemia do novo coronavírus (covid-19) fez o brasileiro prestar mais atenção no trabalho da Organização Mundial de Saúde (OMS). A instituição, subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU), é composta por 194 países membros e dois associados.

“Seria impossível combater a propagação internacional de doenças sem a instituição. O que ocorre no plano global só pode ser enfrentado nesse mesmo nível”, destaca a professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Deisy de Freitas Lima Ventura.

Especializada em direito sanitário, ela esclarece 10 dúvidas frequentes sobre a organização. Algumas delas, propagadas em fake news ou utilizadas erroneamente pelo atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

O que é a OMS e como ela atua?

Deisy Ventura: Ela é uma organização da família das Nações Unidas, que surgiu depois do trauma causado pela 2ª Guerra Mundial para promover a paz e a cooperação entre os Estados. Foi criada em 1946 para coordenar a ação internacional no campo da saúde pública. Ela elabora padrões que são seguidos no mundo inteiro, baseados em evidências científicas. Além disso, fornece assistência técnica, inclusive cursos de formação e atualização de profissionais da área. Propõe, coordena e executa iniciativas conjuntas como programas de imunização e pesquisas sobre medicamentos e tratamentos. Busca e redistribui fundos de financiamento de saúde, entre muitas outras funções.

Em quais momentos a OMS foi importante no cenário nacional e internacional?

Ventura: Um êxito histórico foi a erradicação mundial da varíola, reconhecida em 1980. Outro triunfo foi a convenção sobre o controle do tabaco, de 2003, que é um dos tratados internacionais com maior difusão mundial, atingindo diretamente o cotidiano das pessoas.

No Brasil, como a sua importância pode ser vista na prática?

Ventura: Sobre a mesa de cada médico no mundo há um exemplar da Classificação Internacional das Doenças (CID), elaborada pela organização. Mesmo antes da pandemia, dificilmente ouvimos um telejornal em que um padrão ou recomendação da OMS não seja citado. Por exemplo, dados sobre a qualidade do ar e os níveis de poluição, a presença de substâncias químicas nocivas para o corpo humano, o impacto de hábitos pessoais sobre a saúde etc. O Brasil também é beneficiado por programas internacionais, principalmente por intermédio da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), que é o escritório da OMS para as Américas. Ela ajudou o país em crises pontuais, como a emergência nacional da síndrome congênita do vírus zika (2015-2017), e, agora, em face da covid-19, com a compra de centenas de milhares de testes.

Quem integra a OMS e quem está no seu comando?

Ventura: Ela é composta por 194 Estados. Seu diretor é Tedros Adhanom Ghebreyesus, biólogo, mestre em imunologia e doenças infecciosas da Universidade de Londres e doutor em saúde comunitária pela Universidade de Nottingham. Ele também foi ministro da Saúde (2005-2012) e das Relações Exteriores da Etiópia (2012-2016). Presidiu o Fundo Mundial de Luta contra Aids, a Tuberculose e a Malária (2009-2011), entre outros. Como curiosidade, foi o Brasil quem propôs, juntamente com a China, a criação da OMS, na Conferência de São Francisco, em 1945. Durante 20 anos, a organização teve um presidente brasileiro, Marcolino Candau (1953-1973).

“OMS é forma de enfrentar, em nivel global, a propagação internacional de doenças”, aponta Deisy Ventura (crédito: arquivo pessoal)

A instituição está a serviço da China, como afirmaram as fake news e o discurso de Donald Trump?

Ventura: A OMS está a serviço dos 194 Estados que a compõem, assim como das dezenas que não possuem sistemas de saúde estruturados e que dependem da ajuda internacional para garantir um mínimo de proteção às suas populações. A China contribui com apenas 0,97% do orçamento da OMS. É curioso ver países, que, em decorrência de sua própria política industrial, dependem do mercado chinês para obter os mais elementares insumos de saúde, afirmarem que é a OMS quem está a serviço da China. Os Estados Unidos não seriam, há décadas, os maiores financiadores da OMS se ela não atendesse aos seus interesses. Assim, não se pode confundir os desejos do candidato à presidência com os da população dos Estados Unidos.

O que aconteceria se não houvesse a OMS?

Ventura: Seria impossível combater a propagação internacional das doenças. O que ocorre no plano global só pode ser enfrentado nesse mesmo nível. Além disso, as desigualdades econômicas entre os Estados produziriam um impacto negativo ainda maior nos países mais pobres. Haveria menos compartilhamento de saberes no campo da saúde. Os Estados que não produzem evidências científicas em todos os campos teriam que copiar padrões de outros países, sem mecanismos de controle internacional da fidedignidade [confiança] desses padrões. Com o enfraquecimento da OMS, ganham os países mais ricos que buscam influência internacional por meio de seus projetos de cooperação.

A OMS interfere na autonomia dos países?

Ventura: Não. Ela não possui poder de sanção para fazer cumprir as normas e padrões que ela produz. Os Estados têm todo o interesse em respeitá-las para seu próprio bem, mas não há forma de punir os que não as respeitam. A maior dificuldade enfrentada, hoje, pela OMS é que determinados governos simplesmente não aceitam padrões científicos e ficam irritados quando suas decisões, baseadas em critérios ideológicos, religiosos ou até mesmo caprichos pessoais, são questionadas com base em estudos e recomendações da instituição. Não porque ela possa interferir nos Estados, mas porque informa às populações sobre os efeitos nocivos para a saúde de certas decisões.

Como ela sobrevive financeiramente?

Ventura: Ela depende de contribuições obrigatórias (20% do seu orçamento) e voluntárias dos Estados e de outros doadores (80% do orçamento). A diferença é que nas contribuições voluntárias, quem doa diz para que deve ser usado o dinheiro. Ou seja, a OMS faz o que eles determinam. Por isto, é particularmente triste ver Estados a criticarem por decisões que eles mesmos tomaram ao ceder o financiamento.

Todos os dados sobre o orçamento da OMS estão disponíveis online, em inglês.

Há pressão sobre a instituição, como do setor farmacêutico?

Ventura: Com certeza, ela sofre muitas pressões da indústria, não apenas a farmacêutica. Cito também as grandes fundações filantrópicas, dos Estados mais ricos e, a depender do tema, de diversos outros atores, muitos deles poderosos. A OMS precisa ainda contentar interesses variados dos que a compõem. Na verdade, ela é a soma da vontade dos seus membros.

Quais os pontos que precisariam ser revistos ou melhorados na forma que ela está organizada e atua?

Ventura: Creio que durante uma emergência internacional de saúde pública não é hora de reformar a OMS. É preciso respeitar o seu trabalho e salvar vidas. Encerrada a pandemia, uma análise crítica e independente mostrará que seu problema é subfinanciamento. Com mais recursos, seria mais eficaz e independente em relação aos seus financiadores. Isto permitiria também que os interesses dos países em desenvolvimento ganhassem espaço.

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