Leonardo Valle

A atriz Teresa* teve um casamento de 25 anos em que ela era responsável pela limpeza da casa e cuidado com os filhos. “Mesmo que eu trabalhasse e tivéssemos empregada doméstica em determinados períodos, era uma função minha. Eu que sabia o que era preciso fazer ou comprar para que as coisas no lar funcionassem”, relembra.

“Eu me sentia extremamente sobrecarregada e, para que o marido ajudasse, tinha que pedir. Os cuidados nunca vinham de uma iniciativa ou compromisso da parte dele. Isso, obviamente, provocava um estresse na relação”, pontua.

A situação vivida por ela é um exemplo de carga mental, termo usado para expressar o fato das mulheres – sejam esposas, namoradas, mães, filhas ou irmãs – sempre terem que pensar no trabalho que precisa ser feito.

“Implica planejamento, coordenação, acompanhamento e não só a mera execução. As mulheres tendem a acumular essas atividades, muitas vezes, sem se dar conta de que estão exercendo muitas tarefas ao mesmo tempo”, esclarece a psicanalista e diretora do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Paula Prates.

Foi a ilustradora francesa Emma que mostrou de forma didática, em quadrinhos, essas situações em 2017. “Quando um homem espera da sua companheira que ela diga o que fazer, é que ele a vê como responsável pelo trabalho doméstico”, descreve uma das tirinhas, traduzida pelo coletivo Bandeira Negra.

De acordo com a psicanalista do Inconsciente Real, Aline Mossmann, uma das origens da carga mental está na socialização por gênero, que educa meninos e meninas de forma diferenciada.

“Isso vem mudando, mas, a grosso modo, enquanto aos meninos é solicitado apenas que trabalhem e ganhem dinheiro, às meninas é sugerido que, além disso, também sejam as principais responsáveis pelo cuidado com a casa e os filhos”, afirma.

Criação diferente para meninos e meninas é uma das origens da carga mental (crédito: reprodução quadrinho Emma)

 

Conceituando o problema

Casada há 14 anos, a professora Laura* conta que o marido faz o trivial na casa onde vivem com duas filhas. “Ele arruma a cama, lava a louça do café e o que suja. Mas o grosso, como roupa, comida e limpeza, é quase que, unicamente, minha obrigação”, compartilha.

“Hoje, com mais cobranças no trabalho a conta de tudo chegou. Ou seja, me estresso mais. Tem horas que tenho que escolher se passo a roupa ou faço um semanário”, lamenta.

A psicanalista Ingrid Valério lembra que a sobrecarga de atividades pode impactar a saúde física e mental da mulher. “Esse acúmulo tende a ser naturalizado e muitas vezes nem é percebido. Contudo, ao longo do tempo, ele pode gerar sintomas psicossomáticos e sintomas relacionados a stress, fadiga, exaustão, depressão e até doenças físicas”, enumera.

“Sei que tem companheiros que não fazem nada, mas também existem os que têm mais iniciativa e dividem mais. Eu, particularmente, percebo até com colegas que muitos homens fazem o mínimo e acham que estão ajudando muito”, acrescenta Laura.

Para Teresa, foi importante saber o conceito de carga mental para promover mudanças de vida. “Somente depois de me separar e ler sobre é que eu falei: ‘era exatamente isso que eu passava’. Porque não adianta só ajudar. Tem que ter o olhar e o comprometimento em querer fazer, em ser corresponsável”, confessa.

Em agosto de 2019, diversas mulheres foram às redes sociais compartilhar relatos de carga mental, compartilhados pelas hashtags #porramaridos e #poxamaridos. “Se você não dá nome, não conceitua, é como se a coisa não tivesse clareza suficiente para ser passível de mudança”, defende a atriz.

Novos acordos

Segundo Prates, a culpa das mulheres pelas atitudes dos maridos também está inserida na lógica da carga mental. “Elas acham que cabe a elas também a ‘educação’ dos maridos e a decisão de quais trabalhos eles devem executar”, esclarece.

Laura confessa que sente essa responsabilidade em seu relacionamento, mas entende que também há uma questão cultural envolvida. “Eu penso que deveria ter dado mais responsabilidade, e isso junta com a cultura, a falta de proatividade e a própria criação dos homens. Antes, não percebia ou não me incomodava. Hoje, me incomoda muito”, revela.

Nas relações domésticas, a psicanalista sugere a conscientização do problema e diálogo para a realização de uma divisão de tarefas mais igualitária. “Também é importante que a educação das crianças aconteça nesse sentido. Para já aprenderem com o exemplo dos adultos que representem figuras de autoridade e modelo, desde cedo. É mais fácil já crescer num ambiente assim do que mudar quando adultos”, recomenda.

*Os nomes verdadeiros foram omitidos para preservar a identidade das entrevistadas

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Crédito da imagem: jesadaphorn – iStock

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