Publicado entre janeiro de 1885 e fevereiro de 1886 na revista “A Estação”, o romance “Casa Velha”, de Machado de Assis, é uma das novidades da lista de livros da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para o vestibular 2024. A obra está completando 90 anos de seu lançamento em livro, o que só aconteceu em 1943.
A história se passa durante o Primeiro Reinado no Brasil (1822 a 1831) e tem como protagonista um padre que aspira escrever sobre esse período da história. Para isso, solicita à viúva de uma espécie de ex-ministro que o deixe pesquisar documentos na biblioteca da casa. Durante a investigação, o padre acaba se aproximando de uma agregada chamada Lalau.
“A gente começa a perceber essa interferência da Igreja e uma certa promiscuidade na divulgação das informações a respeito dessa família: quem gosta de quem? Quem deseja o quê? Quem veio de onde? Quem é filho de quem? Acho muito interessante, porque ele está discutindo o Brasil — conta uma história humana, desenha personagens intensos, verdadeiros, profundos com as suas questões. E por trás disso tudo, metaforicamente, há um Brasil sendo revelado”, analisa o professor do Sistema Anglo de Ensino e mestre em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), Mauricio Soares Filho.
Entre o romantismo e o realismo
O pesquisador ressalta que, assim como acontece com outros textos do escritor, neste também há elementos tanto do romantismo como do realismo. “Esse tipo de trama que envolve uma família, o casamento do protagonista, herança, a moça indesejada como uma espécie de agregada, é romântica”.
No entanto, as convenções sociais que estão por trás dessas ações remetem a características do realismo.
“A interferência, por exemplo, da Igreja nessa estrutura familiar, a preocupação incrível da dona da casa com a manutenção do nome da família, de alguma representatividade social que ela não queria de jeito nenhum perder… Essas questões batem com a caracterização dos personagens realistas preocupados com a aparência, com a manutenção de um status social”, conclui.
Links:
“Casa Velha”, de Machado de Assis – Domínio Público.
Música: “Abertura Em Ré Maior (Pe. José Maurício Nunes Garcia)”, do LP “Música Na Corte Brasileira Vol. 3 – Na Corte de D. Pedro I”, com Orquestra Sinfônica Nacional (OSN), fica de fundo
Mauricio Soares Filho:
Para este estudante que está mergulhado nessa obra, me parece interessantíssimo estarmos diante de uma obra que foi escrita por este cara lá em 1885, portanto 150 anos atrás, e que está em permanente redescoberta. A cada releitura, um dado novo vem à tona. Isso é o que define um autor inesgotável.
Eu sou professor Mauricio Soares Filho, professor e autor do Sistema Anglo de Ensino, mestre em literatura brasileira pela FFLCH-USP.
Vinheta: Livro Aberto – Obras e autores que fazem história
Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo
Marcelo Abud:
“Casa Velha”, de Machado de Assis, foi publicado como folhetim em 25 episódios na revista “A Estação”, entre janeiro de 1885 e fevereiro de 1886. Uma das novidades na lista de leituras do vestibular da Unicamp, a obra foi lançada como livro apenas em 1943.
Mauricio Soares Filho:
É um livro que se propõe a trazer à tona um pouco da realidade do período do Primeiro Reinado no Brasil. Então temos uma situação muito criativa em termos de montagem da narração, porque quem está escrevendo é um padre que nos conta que, durante um período, resolveu escrever um livro a respeito do D. Pedro I e da época do Primeiro Reinado e ficou sabendo que havia uma viúva cujo marido tinha sido uma espécie de ministro do D. Pedro I, que tinha uma documentação vasta a esse respeito.
Marcelo Abud:
O padre pede permissão para estudar na biblioteca da casa velha e consultar a documentação, a fim de descobrir histórias interessantes para o livro que queria escrever.
Mauricio Soares Filho:
E é aí que ele entra nessa casa, onde ele é aceito, e começa a interferir nos negócios da família. A dar palpites a respeito, por exemplo, do casamento do filho da dona da casa; começa a ser, inclusive, convidado a, quem sabe, levar o filho para a Europa para que ele possa ser afastado de uma noiva não desejada pela mãe.
Marcelo Abud:
Dona Antônia, proprietária da casa, pede ao padre para que a ajude a afastar o filho, Félix, de Lalau.
Mauricio Soares Filho:
Era uma espécie de agregada, que havia sido criada como afilhada, mas que a grande proprietária não queria ver casada com o seu filho, porque aí é demais! “É a minha afilhada, uma menina de quem eu gosto muito, mas não, não, não, casar com meu filho, aí já é ultrapassar um pouco esse limite”.
Som de página de livro sendo virada
Marcelo Abud:
O professor ressalta que, assim como em outros romances de Machado de Assis, é difícil classificar a narrativa de “Casa Velha” como sendo uma obra totalmente romântica ou puramente realista.
Mauricio Soares Filho:
Esse tipo de trama que envolve uma família, o casamento do protagonista, herança, que envolve, nesse caso, a moça indesejada — era uma espécie de agregada —, esse tipo de trama é romântica.
Acontece que o que está por trás dessa discussão, a interferência, por exemplo, da Igreja nessa estrutura familiar — nunca percamos de vista que o narrador é um padre que conta dessa sua ação —, a preocupação incrível da dona da casa com a manutenção do nome da família, de alguma representatividade social que ela não queria de jeito nenhum perder… Essas questões elas batem com a caracterização dos personagens realistas preocupados com a aparência, com a manutenção de um status social, e que, por tabela, revela um pouco do perfil do governo no Primeiro Reinado. Do perfil do próprio D. Pedro I, no período da Regência, quer dizer, D. Pedro II está sendo preparado para tomar posse, para se tornar o nosso imperador.
Marcelo Abud:
Na casa, o padre também se encanta por Lalau e, ao reprimir esse sentimento, acaba por influenciar Félix, a contragosto de Dona Antonia.
Mauricio Soares Filho:
E esse encantamento do padre, essa certa ambiguidade que acaba havendo entre ele e a Lalau; a forma como o padre também percebe a sua ascendência sobre Félix e o quanto ele tem condição de influir o menino nas suas decisões afetivas… A gente começa a perceber essa interferência da Igreja e uma certa promiscuidade na divulgação das informações a respeito dessa família: quem gosta de quem? Quem deseja o quê? Quem veio de onde? Quem é filho de quem?
Então eu acho muito interessante, porque ele está discutindo o Brasil — e esse é um procedimento comum no Machado de Assis maduro, em Quincas Borba ele faz isso, em Memórias Póstumas ele faz isso, em Dom Casmurro ele faz isso — conta uma história humana, desenha personagens intensos, verdadeiros, profundos com as suas questões. E por trás disso tudo, metaforicamente, há um Brasil sendo revelado.
Marcelo Abud:
Soares Filho lê um trecho da obra que demonstra a relação estabelecida entre o padre o filho da casa.
Som de página de livro sendo virada
Música: “Abertura Em Ré Maior (Pe. José Maurício Nunes Garcia)”, do LP “Música Na Corte Brasileira Vol. 3 – Na Corte de D. Pedro I”, com Orquestra Sinfônica Nacional (OSN), fica de fundo
Mauricio Soares Filho:
“Casualmente dei com os olhos na Storia Fiorentina de Varchi, edição de 1721. Confesso que nunca tinha lido esse livro, nem mesmo o li mais tarde; mas um padre italiano, que eu visitara no Hospício de Jerusalém, na antiga Rua dos Barbonos, possuía a obra e falara-me da última página, que, em alguns exemplares faltava, e tratava do modo descomunalmente sacrílego e brutal com que um dos Farneses tratara o bispo de Fano.
— Será o exemplar truncado? — disse eu.
— Truncado? — repetiu Félix.
— Vamos ver, continuei eu, correndo ao fim. Não, cá está; é o cap. 16 do livro XVI. Uma cousa indigna: In quest’anno medesimo nacque un caso… Não vale a pena ler; é imundo.
Pus o livro no lugar. Sem olhar para o Félix. Sentia-o subjugado.”
Corta música
Som de página de livro sendo virada
Mauricio Soares Filho:
Eu escolhi ler esse trecho porque realmente essa é uma pista incrível. Imagina você que nessa última página dessa história de Varchi, fala-se de uma situação de abuso sexual. O ‘descomunalmente sacrílego e brutal com que um dos Farneses tratara o bispo de Fano’. Quer dizer, esse cara foi vítima de um estupro.
E aí o que acontece? Há uma sugestão de que o padre está querendo que o Félix leia esta parte, é óbvio que ele quer. Como assim? Ele fala ‘nossa, o capítulo XVI (risos), é do livro XVI. Nossa, essa página não tem em lugar nenhum, só aqui. Não lê, hein?’. E aí o cara deixa o livro assim e sai e vai embora. Não se menciona nunca mais isso, mas isso dá a dimensão da relação estabelecida entre o pároco, que é o narrador, e o Félix. Uma relação de dominação, em que o Félix sente-se subjugado. A exemplo daquela narrada no livro na página, normalmente arrancada, e que naquela biblioteca estava presente.
Música instrumental de Reynaldo Bessa fica de fundo
Marcelo Abud:
Mauricio Soares Filho aponta ainda para a importância da representação da pessoa agregada no livro. O tema é recorrente em romances do escritor, pois os pais dele viveram condição parecida e moraram em uma casa velha da esposa de um falecido senador, onde Machado cresceu.
Marcelo Abud para o Livro Aberto, do Instituto Claro.