O nonsense é caracterizado pelo desafio à lógica e à razão. Na literatura, o termo se associa à obra de Lewis Carroll, principalmente em “Alice no País das Maravilhas”, de 1865.
“Um coelho com relógio correndo, puxando o saco de uma rainha, não é uma metáfora óbvia, ela é uma metáfora complexa, ela é um símbolo. E ‘Alice’, ela é um grande conjunto de símbolos amplos, profundos, dentro de — eu acho que isso é o mais brilhante — uma narrativa infantojuvenil, mas que não tem a superficialidade de um livro infantojuvenil”, analisa a professora de literatura e pós-doutora pela Unicamp Marcella Abboud.
Para ela, o simbólico dá uma gama de interpretações e vai além do óbvio. Na avaliação de Abboud, isso torna o livro mais popular do autor inglês uma obra alinhada ao vestibular da Unicamp, que tem buscado escolhas que valorizem uma análise literária com mais profundidade.
“O Lewis Carroll sabia que criança não é uma tábula rasa, tanto que existe uma metalinguagem no livro disso, ‘Alice’ o tempo todo tá ridicularizando contos de fada, porque eles são pedagogizantes, eles são moralizantes, eles não são complexos, eles são só para ensinar a criança a não falar com estranho, e ele não acreditava nisso para crianças”, pontua a professora.
A alteridade em “Alice”
No áudio, Marcella Abboud analisa mais detalhes da obra e faz apostas sobre possíveis pontos que podem ser foco de um vestibular como o da Unicamp. Entre esses aspectos, a professora aponta o que considera o tema central em “Alice no País das Maravilhas”.
“Esse livro é uma obra sobre a alteridade — o outro e como esse outro me constitui na minha identidade. Alice tá buscando entender quem ela é —, ela verbaliza isso várias vezes: ‘não sei mais quem eu sou’. E ela vai aprendendo um pouquinho, desconstruindo e construindo quem ela é no encontro com a diferença, no encontro com o mundo que tira ela completamente dos conhecimentos que ela tinha sobre si”, completa a pós-doutora.
Música: Introdução de “O Futuro que me Alcance”, de Reynaldo Bessa, fica de fundo.
Marcella Abboud:
A criança é muito silenciada, a criança é muito desconsiderada. E até pouco tempo a criança nem era um alvo de discussão. Então colocar o olhar da criança como sendo o olhar mais correto, colocar a loucura como uma forma de consciência, colocar o saber do outro como um espaço de autoconhecimento, eu acho extremamente subversivo. O centro sai da margem, e isso é bem interessante.
Sou Marcella Abboud, professora de literatura; formada em letras e pedagogia, graduada, mestre, doutora e pós-doutora na Unicamp. E atuo atualmente também como crítica literária e editora de conteúdo de obras literárias.
Vinheta: Livro Aberto – Obras e autores que fazem história.
Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo.
Marcelo Abud:
“Alice no País das Maravilhas” entra para a lista de livros do vestibular da Universidade Estadual de Campinas como a primeira obra traduzida. Para Marcella Abboud, a Unicamp tem valorizado cada vez mais a análise literária. Nesse contexto, não importa o movimento do qual a obra faz parte, mas sim a interpretação que permite. Em “Alice no País das Maravilhas”, a força está no poder simbólico do texto.
Marcella Abboud:
Se eu leio uma fábula, eu consigo transpor o sentido de um cordeiro para uma ingenuidade sem grandes elocubrações imagéticas. Agora um coelho com relógio correndo, puxando o saco de uma rainha, não é uma metáfora óbvia, ela é uma metáfora complexa, ela é um símbolo. E “Alice”, ela é um grande conjunto de símbolos amplos, profundos, dentro de – eu acho que isso é o mais brilhante – uma narrativa infantojuvenil, mas que não tem a superficialidade de um livro infantojuvenil. Ele é complexo, ele é simbólico, ele é rico em imagens. Então ele permite que esse aluno de fato desenvolva essa habilidade dentro de uma literatura que é coerente com a faixa etária dele.
O Lewis Carroll sabia que criança não é uma tábula rasa, tanto que existe uma metalinguagem no livro disso, Alice o tempo todo tá ridicularizando contos de fada, porque eles são pedagogizantes, eles são moralizantes, eles não são complexos, eles são só para ensinar a criança a não falar com estranho, e ele não acreditava nisso para crianças.
Marcelo Abud:
A professora destaca essa crítica à transformação da infância num espaço de leitores pouco desenvolvidos como um dos pontos importantes do livro.
Marcella Abboud:
Se o professor ou professora derem uma olhadinha no epílogo da obra, isso fica bem claro na fala da irmã da Alice, quando ela verbaliza, né, que a Alice só vai ser incrível se ela mantiver a pequena Alice dentro dela. É como se todos nós fossemos grandiosos à medida que mantivéssemos alguma ligação com esse olhar fantástico infantil. Porque o nonsense, e aí também já deixo uma chave de leitura pelo próprio nonsense na fala do gato – eu uso a versão brasileira, o gato Cheshire – que vai dizer assim ‘todo mundo é louco’. Brincando com Aristóteles, ‘se todo mundo é louco, ninguém é louco’. Então a loucura ela é uma forma de consciência. Ele representa isso, né, ele é o único que percebe a loucura ali e ele acha graça, ele vai usar da loucura como mecanismo.
Marcelo Abud:
Além dessa crítica à infantilização, o segundo aspecto do nonsense, segundo Marcella, é servir como amostra de que a falta de lógica é um estágio da consciência.
Marcella Abboud:
Ela é uma forma de se pensar o mundo ética e esteticamente, então ela é uma decisão tanto da ordem do raciocínio quanto da ordem da estética – o nonsense como estética. Eu diria que tem alguma coisa muito forte nessa fala da Alice, quando ela vai cantar as musiquinhas e ela erra, quando ela vai fazer conta e ela não sabe, que é uma crítica muito forte à própria pedagogia, ao jeito que se ensinava crianças – conteudista –, e aí eu vejo na Unicamp escolher esse livro mais uma indireta, entendeu, mais uma camada.
Marcelo Abud:
A pesquisadora traz ainda um terceiro ponto que chama a atenção na leitura, que é o que ela considera o tema principal do livro.
Marcella Abboud:
Esse livro é uma obra sobre a alteridade – o outro e como esse outro me constitui na minha identidade. Alice tá buscando entender quem ela é – ela verbaliza isso várias vezes: ‘não sei mais quem eu sou’. E ela vai aprendendo um pouquinho, desconstruindo e construindo quem ela é no encontro com a diferença, no encontro com o mundo que tira ela completamente dos conhecimentos que ela tinha sobre si. Até quando brinca, né, essa é uma imagem bastante recorrente, ora grande ora pequena. É esse não lugar, que Alice tá no processo de ‘adultecer’, encontrando quem ela é, e esse encontro só se constrói pelo outro, pela alteridade. Isso é muito bonito.
Som de página de livro sendo virada.
Marcelo Abud:
A pedido do Instituto Claro, Marcella compartilha o que acredita que possa ser foco da prova da Unicamp.
Marcella Abboud:
Vou te dar as apostas que eu dou pros meus alunos, hein? Entregando o meu ouro…
Figuras de linguagem do campo da metáfora, da metonímia, comparação. Figura de linguagem é uma excelente questão de primeira fase, e esse é um livro que acabou de entrar, então ele pode aparecer muito na primeira fase.
Questões de discurso, porque tem uma mescla de discurso direto, de indireto. Hora ela fala em discurso direto, hora o narrador… esse narrador que é bastante interessante na onisciência dele.
Análise de cenas: interpretar cenas e os direcionamentos que essas cenas conduzem.
A relação com o onírico. Então talvez que o aluno identifique elementos que são marcadores textuais do onírico: o calor, a febre, a queda, essas pequenas imagens que nos levam ao mundo dos sonhos – que fazem esse mundo sonhos.
E, por fim, como muita coisa se fez sobre “Alice”, acho que uma questão de intertextualidade com outras obras pode aparecer. Por exemplo, a Rainha de Copas do Tim Burton é uma Rainha de Copas maligna, e o livro é uma Rainha de Copas babaca. A Alice, ela ridiculariza a Rainha de Copas, é uma grande crítica inclusive ao poder absolutista, né, à figura do monarca – esse poder sem nenhum tipo de sabedoria.
Som de página de livro sendo virada,
Marcelo Abud:
Marcella traz uma citação do Chapeleiro Maluco e analisa o significado que ela tem no contexto do livro.
Marcella Abboud:
A loucura dele, né? Você entende em determinado momento que tem uma relação muito forte com a questão do tempo: tá sempre a começar e a terminar, porque nunca chega. A questão do tempo, ela é uma discussão que o Chapeleiro tem. Ele não tá bem com o tempo, é por isso que ele tá louco. E ele tá mal com o tempo porque a rainha decretou que seria sempre o mesmo horário.
E aí ele personifica, né, – é uma figura de linguagem interessante – o tempo e fala uma das coisas que para mim tem sido bastante marcante na minha vida atualmente, que é ‘o tempo não suporta ser marcado como se fosse gado, mas se você vivesse com ele em boas fases, ele faria qualquer coisa que você quisesse com o relógio’.
Eu adoro essa citação porque é essa lembrança que eu me coloco bastante, de que o tempo, ele é soberano e é preciso estar em paz com ele para que ele me dite a minha relação… que viver, né, brigando com o tempo, acho que é um dos maiores erros que a gente pode cometer na vida adulta, e o olhar infantil ensina a gente a estar no presente.
Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo.
Marcelo Abud:
Desde a primeira edição de “Alice no País das Maravilhas”, em 1865, o livro tem encantado gerações ao trazer uma criança de sete anos e meio que se vê diante de um mundo novo e assustador.
Marcelo Abud para o Livro Aberto do Instituto Claro.