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Confira a transcrição do áudio
Escritos no século 17 pelo jesuíta português Antonio Vieira (1608 – 1697), os três sermões de Quarta-Feira de Cinza – produzidos para pregações nessa data – tratam da morte como cerne da consciência cristã. Desta forma, ao gerar temor, o fim da vida orienta as práticas da existência humana.
“O primeiro texto traz como tema bíblico a frase que Deus teria dito a Adão, quando expulsou Adão e Eva do paraíso: ‘Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris’ – em português: Lembre-se, homem, que és pó e em pó te reverterás. A partir dessa passagem, ele tenta provar que o homem, além de se tornar pó, já é pó”, explica o professor de literatura do Cursinho da Poli, Frederico Barbosa, entrevistado no áudio.
“No terceiro sermão, Vieira quer provar que a morte termina com os sofrimentos, angústias e misérias da vida. Mas ela só pode ser positiva, só pode ser um bem, se a nossa existência for digna, se a gente fizer por merecer a vida eterna no paraíso”, analisa.
A reunião desses três sermões traz argumentos relativos à eternidade, à hora da morte e às misérias da vida e dos vivos. “Das publicações indicadas para o vestibular da Unicamp, você tem romance, poema, conto, peças de teatro, mas textos dissertativo-argumentativos só nos sermões de Quarta-feira de Cinza”. A argumentação proposta por Vieira é a dialética entre o temor e a consolação.
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Créditos:
A música utilizada de fundo no podcast é “Nisi Dominus – Cum Dederit”, de Antonio Vivaldi. A dramatização é feita pelo ator português Luís Miguel Cintra, que viveu o Padre Antonio Vieira no cinema.
Transcrição do áudio:
Vinheta: “Livro aberto: obras e autores que fazem história”
Com música de Vivaldi ao fundo, ouvimos frases referentes aos três sermões de Quarta-feira de Cinza, do padre Antonio Vieira, na voz do professor Frederico Barbosa:
“Comecemos, de hoje, em diante a viver como queremos ter vivido na hora da morte”
“O pó da vida é o antídoto para o pó da morte”
“O maior bem da vida é a morte e o maior mal da morte é a vida”
Marcelo Abud:
Em três sermões de Quarta-feira de Cinza, dia que marca o início da quaresma na tradição católica, o padre Antonio Vieira trata da morte como o cerne da consciência cristã.
Neste Livro Aberto, vamos virar as páginas de discursos escritos no século 17, em que pensar sobre o fim da vida serve de orientação às práticas da existência humana. Para isso, o Instituto Claro conversa com Frederico Barbosa. Você vai ouvir também um trecho dos sermões de Quarta-feira de Cinza, na voz do ator português Luís Miguel Cintra.
O professor de literatura do cursinho da Poli começa contextualizando a obra.
Frederico Barbosa:
Os dois primeiros foram pregados em Roma, um em 1672, outro em 1673; e o último nunca foi pregado e foi escrito em Lisboa, provavelmente entre 1675 e 1681. Os três têm o mesmo título: Sermões de Quarta-Feira de Cinza, porque os dois primeiros foram pregados na Quarta-Feira de Cinza de anos sucessivos.
Som de página de livro sendo virada
Frederico Barbosa:
O primeiro traz como tema bíblico a frase que Deus teria dito a Adão, quando expulsou Adão e Eva do paraíso: ‘Memento, homo’ (Lembre-se homem) ‘quia pulvis es’ (que és pó) ‘et in pulverem reverteris’ (e em pó te reverterás). A partir dessa frase, ele tenta provar que o homem, além de se tornar pó, o homem já é pó. Ele diz, no começo, que é fácil você provar que o homem vai se tornar pó, basta você abrir um túmulo e ver os restos mortais. Então, o pó futuro dá pra gente provar com tranquilidade, mas o pó presente é que a gente tem dificuldade de aceitar nos sentindo homens, nos sentindo pessoas, sabendo que a gente tem voz, que a gente tem ação, como é que a gente poderia ser pó, então?
Música “O Pó da Estrada”, Sá, Rodrix e Guarabyra
“O cheiro forte da poeira levantada / Levando a gente, sempre mais à frente / Nada mais urgente, que o pó da estrada”
Frederico Barbosa:
Aí ele usa uma imagem muito bonita, ele usa a imagem de uma praça e diz o seguinte: que é como pó numa praça; o vento vem, sopra o pó, o pó se levanta e passeia pelas ruas, pelas casas, por todo o canto… Quando o vento passa, o pó cai. O pó levantado, esse pó que é levantado pelo vento, é o pó da vida; e o pó caído, o pó descansado, como ele fala, é o pó da morte. Portanto, ele acaba provando pra gente que nós somos tanto pó quanto seremos pó.
Ele usa uma outra imagem importante, ele diz que só Deus é sempre a mesma coisa; que o homem se transforma, mas que ele se transforma de pó, antes de nascer, pra pó, depois de morrer, e, portanto, ele é pó. Já que ele é no passado pó e no futuro pó. Ele diz que nós não somos nada no presente, nós somos o que fomos e o que seremos, portanto o homem é pó. Ele vai criando várias formas de provar e esse objetivo nuclear desse sermão especificamente, que o homem é pó na vida. E a conclusão que ele chega é a de que, já que a gente é pó na vida, a gente tem que refletir o tempo inteiro sobre essa transformação que nós vamos ter de pó da vida pra pó da morte. Então, nós devemos pensar na morte.
Ele diz que não adianta o homem ficar se arrependendo, não adianta a contrição na hora da morte, você tem que estar preparado pra morte o tempo inteiro, ou seja, você tem que estar o tempo inteiro pensando em como você viveu, nas coisas que você fez… Ele até propõe no final uma coisa muito interessante, ele diz o seguinte:
Som de página de livro sendo virada
Trecho do Sermão de Quarta-feira de Cinza, na voz do ator português Luís Miguel Cintra:
“Tomar uma hora cada dia, em que só por só com Deus e conosco cuidemos na nossa morte e na nossa vida. E porque espero da vossa piedade e do vosso juízo que aceitareis este bom conselho, quero acabar deixando-vos quatro pontos de consideração para os quatro quartos desta hora. Primeiro: Quanto tenho vivido? Segundo: Como vivi? Terceiro: Quanto posso viver? Quarto: Como é bem que viva? Torno a dizer para que vos fique na memória: Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso viver? Como é bem que viva? Memento homo!”
Frederico Barbosa:
E aí ele propõe que as pessoas tomem uma hora de cada dia pra, com Deus, e só com Deus, como ele fala, ou seja, sem música, sem iPod, sem iPad, não quer dizer, ele não tinha isso, mas sem nada, em absoluto silêncio, uma hora só do dia e pensar nisso, diz ele, você vai conseguir se preparar bem para a morte. Eu sempre recomendo para os meus alunos que, ao estudarem, pensem sempre nisso também. Eu não recomendo uma hora, porque uma hora hoje em dia é difícil, mas 15 minutos do dia você tirar para pensar o quanto você estudou, como você estudou, o quanto você ainda tem para estudar e como você pode estudar para o bem, ou seja, estudar para fazer o bem, para fazer alguma coisa na vida.
Som de página de livro sendo virada
Frederico Barbosa:
O segundo sermão, também pregado em Roma em 1673, já usa como tema bíblico só a frase “pulvis es” (és pó) “et in pulverem reverteris” (e em pó te reverterás). Ele parte do princípio de que o pó da vida é o antidoto para o pó da morte, ou seja, como é que a gente pode se preparar para a morte? Ele fala: “vivendo e, principalmente, morrendo antes de morrer de fato”. Para essa imagem de antídoto ele usa uma história interessante, que é uma história antiga, de um rei, cuja mulher queria matá-lo e, para matá-lo, coloca um veneno na sua bebida. Mas aí ela pensa bem, fala ‘não, tenho que garantir que esse cara morre’. Coloca outro veneno na bebida, coloca dois venenos, pra garantir que ele iria morrer mesmo, só que ele toma e fica bem. Por que? Porque os venenos na verdade se anulam, não é? Um veneno é o antídoto do outro. E ele diz, na verdade, que se a gente morrer antes da morte mesmo a gente vai anular os efeitos negativos dessa morte. E a gente vai conseguir, nesse período, se preparar bem para morrer e, portanto, viver uma vida eterna, que virá depois da morte, bem.
Música: “Tocando em Frente” (Almir Sater e Renato Teixeira)
“É preciso amor pra poder pulsar, é preciso paz pra poder sorrir, é preciso a chuva para florir”
Frederico Barbosa:
Como é que seria morrer antes da morte? É se livrar de todas as vaidades, de todas as tentações, de toda a luxúria, de todo o pecado, viver uma vida ascética e sem querer a agitação da vida cotidiana, de certa maneira se retirar e viver em oração, como ele fez nos últimos 16 anos da sua vida. Em 1681, ele vai pra Salvador e fica lá 16 anos só preparando os seus sermões pra serem publicados. E, nesse sermão, ele termina dizendo o seguinte: “Só os que morrem antes de morrer gozam seguramente de paz e descanso, que leva a paz e descanso na outra morte afinal”.
Som de página de livro sendo virada
Marcelo Abud:
O terceiro sermão de Quarta-feira de Cinza nunca foi pregado e, de acordo com o professor Frederico Barbosa, é menos coeso do que os outros dois. Isto porque Vieira não teve tempo de revisá-lo e foi publicado depois da morte dele.
Frederico Barbosa:
Esse sermão parte da ideia de que ele quer provar que a morte termina com todos os sofrimentos, com todas as angústias, com todas as misérias da vida. Mas essa morte só pode ser positiva, só pode ser um bem, se a nossa vida for uma vida meritória, né, se a gente fizer por merecer a vida eterna no paraíso. E aí ele chega à conclusão do seguinte: “Os bens todos estão sujeitos a grandes misérias, das quais só nos pode livrar a morte. De onde se segue que a mesma morte é o maior bem da vida; viver e morrer de tal modo que na vida logre o maior bem da morte e na morte não padeça o maior mal da vida”. Então reparem os jogos antitéticos: bem, mal, vida, morte. O tempo inteiro, a gente fica até meio confuso nesse texto, ou seja, ele é totalmente barroco e paradoxal. Mas ele está dizendo o que para gente? A gente tem que viver uma vida boa para conseguir uma morte boa.
Música de Vivaldi ao fundo
Marcelo Abud:
Apesar de escritos no século 17, os sermões de Quarta-feira de Cinza demonstram atualidade. Eles chamam atenção, através da consciência da morte, para a inutilidade da acumulação de riquezas. Desta forma, Vieira busca chamar o homem à sua dimensão espiritual e à necessidade da diminuição da desigualdade social.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.