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“Angústia”, do alagoano Graciliano Ramos, foi publicado no ano de 1936, época em que o escritor estava preso pelo governo Vargas. Considerado um dos romances mais ricos da literatura brasileira, o livro passa a integrar a lista da Fuvest, no lugar de outro mais conhecido dele: “Vidas Secas”. Para tratar dos detalhes da narrativa, o Instituto Claro ouve o professor do Programa de Pós Graduação e Estudos Comparados de Literatura e de Língua Portuguesa, da FFLCH/USP, Thiago Mio Salla.

Apesar de o personagem central, Luís Silva, ser apresentado em sua jornada existencial, na obra, o romance social também está presente de maneira importante. “Ela é lançada em um ambiente autoritário, repressor, no momento de ascensão do nazifascismo. Esse enquadramento de época é algo a ser levando em conta”, afirma o entrevistado.

Nessas circunstâncias, Graciliano foi preso sem processo, em uma completa violação do estado democrático de direito. No ano seguinte, 1937, foi absolvido da mesma forma que havia sido detido: sem acusação formal. “Suspeitava-se que ele era comunista, porque havia promovido uma política de inserção das populações carentes no ensino como secretário de Educação”, ressalta Mio Salla, para demonstrar que Graciliano contrariava os interesses do então presidente da República, Getúlio Vargas.

A saga de Luís Silva é fortemente influenciada por esse contexto histórico e traz os dramas da sociedade brasileira, sobretudo da região nordeste. “A narrativa é dotada de diversas simbologias que fazem referência à situação social, ao sistema político, e, ao mesmo tempo, discute a existência humana, as relações sociais, o psicológico.”

A obra é considerada um estudo completo da frustração, nos apresentando abertamente o ser humano em seus piores defeitos. “Só que ele [Luís Silva] sofre um abalo muito grande depois do assassinato e o que a gente vai ler, que é o “Angústia”, é um livro escrito pós-assassinato. Depois de ter sofrido, ter padecido desse trauma, ele vai contar essa história”, destaca o professor.

No áudio, Thiago Mio Salla faz uma análise da produção, traz uma sinopse da história e lê um trecho do livro em que Luís Silva está em uma viagem de bonde que, segundo o entrevistado, permite que se entenda como o autor trabalha com três planos que caminham em paralelo: “um olhar objetivo em relação ao mundo, ao mesmo tempo a infância, ou seja, a criança traumatizada que, por sua vez, repercute no modo como esse adulto recalcado enxerga o mundo”.

Thiago Mio Salla durante entrevista ao podcast do Instituto Claro (crédito: Daniel Grecco)

 

Créditos:
As músicas utilizadas na edição do áudio, por ordem de entrada, são: “Marina” (Daisy Sanz / Yasmil Marrufo), com Júpiter; “Jesus chorou” (Racionais MC’s); “Canção infantil” (César MC); e “Estou sozinho” (José Luis Peixoto e Reynaldo Bessa), com Reynaldo Bessa.

Crédito da imagem principal: reprodução site Graciliano Ramos

Transcrição do podcast:

Vinheta “Instituto Claro”

Vinheta: “Livro aberto: obras e autores que fazem história”

Trilha sonora

Marcelo Abud:
As páginas que vamos folhear hoje são de um dos romances mais elaborados e originais da literatura brasileira. Neste capítulo, o Instituto Claro ouve o professor do Programa de Pós Graduação e Estudos Comparados de Literatura e de Língua Portuguesa, da FFLCH/USP, Thiago Mio Salla.

Ele fala sobre a obra “Angústia”, de Graciliano Ramos.

Thiago Mio Sala:
É um escritor identificado com o romance social, mas que se vale de técnicas que são muito próximas do romance intimista. É um romance difícil de você enquadrá-lo, por mais que o Graciliano se filie a esse grupo do romance social – e, aí, que acho que é o mais interessante da obra.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
“Angústia” é considerado um estudo completo da frustração, ao apresentar o ser humano em seus piores defeitos.

Thiago Mio Salla:
É uma história de um funcionário público, que faz alguns bicos em redações de jornal, que mora numa porção um tanto quanto afastada dessa cidade, basicamente ele mora sozinho juntamente com uma empregada, a Vitória, mas é um sujeito antissocial, um sujeito que está um tanto quanto apartado do mundo. Num determinado dia, ele vislumbra a vizinha, a Marina, entabula com ela uma certa amizade e consegue depois um emprego pra ela e acaba se apaixonando, e, apaixonado, ele a pede em casamento. E todas as economias que ele tinha, ele vai usar para esse “enxoval hipotético”, vamos dizer assim.

Música: “Marina\” (Daisy Sanz / Yasmil Marrufo), com Júpiter
“Me aborreci, me zanguei / Já não posso falar / E quando eu me zango, Marina / Não sei perdoar”

Thiago Mio Salla:
Esse casamento não vai vir a existir, por quê? Porque entra na história a figura do Julião Tavares, que é um filho de comerciante, bacharel em direito, ousado, tem recursos econômicos, sedutor, que vai lá e seduz Marina. E a Marina, obviamente, esquece a promessa, o compromisso com o Luís da Silva.

O Luís da Silva… mesmo a relação dele com o feminino é muito complicada, porque ele tem uma relação quase que emasculada. Ao longo da infância você vê que esse contato com o feminino é algo que foi podado, praticamente você não tem referência da figura materna dele. E aí ele acaba nutrindo, ao longo da trama, um ódio por essa figura do Julião Tavares, também pela própria Marina, mas ele centraliza no Julião Tavares.

Marcelo Abud:
Revoltado pelo mau caráter de Julião Tavares, que, pela condição social privilegiada, aproveita-se de Marina, Luís perde o equilíbrio e mata o rival. É com uma corda que se assemelha à imagem de uma cobra enrolada que a vingança se dá.

Thiago Mio Salla:
Essa ideia da corda, da cobra – cobra, o animal – tem várias imagens ao longo do livro. Por exemplo, quando ele volta pra infância tem a figura do avô paterno que uma cobra se enrola no pescoço do avô; tem um momento, que ele fala um poço, no qual ele nada quando era criança que também era povoado de cobras; tem a figura, por exemplo, de um determinado cangaceiro, um bandoleiro chamado Chico Cobra, ele se refugia no mato, em meio às serpentes, para não ser preso pela polícia; tem também uma passagem de um enforcado, uma pessoa que se enforca , isso marca também na retina da criança; tem também quando os bandoleiros eram presos e chegavam amarrados na cidade. Então essa figura da corda, da cobra, é algo que aparece sistematicamente e, não por acaso, o Julião Tavares vai ser morto com uma corda.

Música: “Jesus chorou” (Racionais MC’s)
“Durmo mal, sonho quase a noite inteira / Acordo tenso, tonto e com olheira / Na mente, sensação de mágoa e rancor / Uma fita me abalou na noite anterior”

Thiago Mio Salla:
Esse personagem, depois de assassinar esse seu duplo – a ideia do duplo é exatamente essa, ou seja, o Julião Tavares é tudo o que o Luís da Silva não é, tem um ímpeto que ele não tem; tem recursos que ele não tem. Então é uma forma de, ao assassiná-lo, de apagar esse outro lado que também é dele e conseguir uma certa estabilidade psíquica.

Música: “Jesus chorou” (Racionais MC’s)
“Eu sei e você sabe o que é frustração / máquina de fazer vilão / Eu penso mil “fita” / Vou enlouquecer

Thiago Mio Salla:
Só que ele sofre um abalo muito grande depois do assassinato e o que a gente vai ler, que é o “Angústia”, é um livro escrito pós-assassinato, com ele depois de ter padecido desse trauma e ele vai contar essa história.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
O saudoso crítico Antonio Candido considerava “Angústia” o livro mais complexo de Graciliano. Na análise “Ficção e confissão”, ele escreve que o autor demonstra um domínio como poucos dos recursos de descrição, diálogo e análise.

Thiago Mio Salla:
Quando a gente olha para aquilo que o narrador apresenta é como se a gente tivesse, o próprio Antônio Candido também menciona isso, como se fossem três abordagens que são um tanto quanto simultâneas. Ou seja, um narrador que vai me apresentar a realidade objetiva daquele momento; depois, ao mesmo tempo, essa realidade ela é vista por este mesmo narrador, que por sua vez, volta pra infância sistematicamente, que de alguma forma manifesta aquilo que a criança machucada, a criança traumatizada, ele enquanto criança trazia; e, ao mesmo tempo, esse mesmo adulto, ele olha para o mundo de uma forma deformada, um tanto quanto torta. A gente fala que é uma espécie de deformação expressionista. Isso é um detalhe muito importante ao longo da trama: o quanto que o Luís da Silva apreende o mundo pelo olhar, o contato interpessoal não é algo muito efetivo da parte dele.

Música: “Canção Infantil” (César MC)
“Era uma casa não muito engraçada / Por falta de afeto (…) / Dizia o poeta, o que é feito de ego / Na Rua dos Tolos, gera frustração”

Thiago Mio Salla:
É uma visada do mundo muito racional, por meio do olhar, mas um racional povoado desses traumas, desses recalques que o fazem olhar pra a realidade objetiva de um modo completamente – quando eu digo torto, deformado, a gente fala de deformação expressionista, ou seja, como se eu tivesse aparentemente escrevendo o mundo, mas segundo a minha perspectiva, segundo a minha subjetividade, no caso uma subjetividade machucada, traumatizada, recalcada. Ele tá dialogando com o romance psicológico, do ponto de vista de técnica também, mas, ao mesmo tempo, a presença do romance social tá ali presente.

Acho que esse é um ponto importante: o quanto de social existe no recalque desse personagem. Ou seja, não é algo pura e simplesmente individual, tem uma estrutura econômica que levou a essa degradação dessa família rural tradicional que vai perdendo esse posto que ela então ocupava.

Marcelo Abud:
O professor comenta o que há de atualidade na obra de Graciliano.

Thiago Mio Salla:
É um esforço sistemático ao longo das primeiras obras, e acho que “Angústia” é o ponto culminante desse processo, de investigação desse “eu”, que, ao mesmo tempo, que ele é um mundo de desejos, de desejos reprimidos ele tem uma atuação social, precisa ter uma máscara social. Então, nesse sentido, ele é muito atual, ou seja, sempre atual para tentar entender como que esse homem subterrâneo, que vive em todos nós, como que, diante de circunstâncias específicas, isso acaba levando uma espécie de loucura e o crime.

Música: “Estou Sozinho”, José Luís Peixoto e Reynaldo Bessa
“Sinto falta de palavras / Estou sozinho / Sinto falta de uns olhos onde possa imaginar / Sinto falta de mim / Estou sozinho

Som de página de livro sendo virada

Thiago Mio Salla:
Pensar do ponto de vista individual, ou seja, o próprio título que é um substantivo abstrato “Angústia’…. e quando a gente pensa na nossa vida contemporânea, na qual a medicalização desse tipo de sentimento é cada vez maior. Ou seja, é algo bem contemporâneo pensar por esse ponto de vista. Outra questão que também eu acho importante e tem a ver com o fato do romance não ser muito bem enquadrado, ou seja, um romance psicológico mas ao mesmo tempo ele tem uma matriz social claramente colocada. Num contexto no qual nós vivemos de uma polarização político-ideológica, nós em certo sentido sofremos enquanto indivíduos, mas ao mesmo tempo fazemos parte de uma sociedade burguesa-capitalista que nos leva a determinados tipos de comportamentos, tentar equacionar, ver o quanto que esse embate entre o nosso subconsciente, o nosso ID, o nosso superego, ou o nosso ego, propriamente dito, são temas que eles dizem muito, eles dialogam muito de perto com o que a gente vive hoje.

Marcelo Abud:
Thiago Mio Salla explica e, na sequência, lê um trecho que considera representativo do livro “Angústia”.

Thiago Mio Salla:
É uma viagem de bonde, que ele faz logo no início da trama e ela é bem interessante pra gente conseguir entender quando eu havia mencionado que nós temos aqui três planos que caminham paralelos. Ou seja, um olhar objetivo em relação ao mundo, ao mesmo tempo a infância, criança traumatizada que por sua vez repercute no modo como esse adulto recalcado enxerga o mundo. E nesse enxergar o mundo, nesse adulto recalcado, aparece essa deformação expressionista.

Som de página de livro sendo virada

Som de bonde ao fundo

Thiago Mio Salla:
“À medida que o carro se afasta, do centro, sinto que me vou desanuviando. Tenho a sensação de que viajo para muito longe e não voltarei nunca. Do lado esquerdo, são as casas da gente rica, dos homens que me amedrontam, das mulheres que usam peles de contos de réis. Diante delas, Marina é uma ratuína. Do lado direito, navios. Às vezes há diversos ancorados. Rolam bondes para a cidade, que está invisível, lá em cima, distante. Vida de sururu.

(…)

Rua do Comércio. Lá estão os grupos que me desgostam. Conto as pessoas conhecidas: quase sempre até os Martírios encontro umas vinte. Distraio-me, esqueço Marina, que algumas ruas apenas separam de mim. Afasto-me outra vez da realidade, mas agora não vejo os navios, a recordação da cidade grande desapareceu completamente. O bonde roda para oeste, dirige-se ao interior. Tenho a impressão de que ele me vai levar ao meu município sertanejo. E nem percebo os casebres miseráveis que trepam o morro, à direita; os palacetes que têm os pés na lama, junto ao mangue, à esquerda. Quanto mais me aproximo de Bebedouro mais remoço. Marina, Julião Tavares, as apoquentações que tenho experimentado nestes últimos tempos, nunca existiram. Volto a ser criança.”

Marcelo Abud:
Sobre o livro “Angústia”, Antonio Candido escreve ainda: “O leitor chega a respirar mal no clima opressivo em que a força criadora do romancista fez medrar a personagem mais dramática da moderna ficção brasileira: Luís da Silva… um frustrado violento, cruel, irremediável, que traz em si reservas inesgotáveis de amargura e negação”.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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