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“O Ateneu”, de Raul Pompeia (1863-1895), é uma das novidades da lista para a Unicamp 2021, que foi reduzida de 12 para sete obras, em caráter excepcional, considerando o contexto da pandemia do novo coronavírus (covid-19). Uma boa notícia é que, por ter sido publicado em 1888, o livro está em domínio público, o que facilita o acesso e a leitura.

Considerado destaque do realismo-naturalismo, a produção tem alguns traços próprios, como o determinismo mesológico, que trata da influência do meio sobre o sujeito. “O colégio interno Ateneu exerce influência sobre a formação do indivíduo, principalmente o Sérgio, mas também sobre os outros alunos”, destaca o mestre em teoria literária pela Unicamp e professor de literatura do Anglo, Fernando Marcílio, entrevistado no podcast.

Ilustração de Sérgio feita por Raul Pompeia na edição de “O Ateneu”, da coleção Clássicos Zahar (crédito: divulgação editora Zahar)

O romance é uma recriação artística de um colégio interno, o Ateneu. Narrado em 1ª pessoa por Sérgio, a escrita artística é um recurso utilizado pelo autor.

“O livro fala sobre as dificuldades que um adolescente enfrenta num colégio. Para figurar, para representar bem isso, o que o narrador faz? Torna a sua escrita difícil, árdua para o leitor. Assim, quando quem lê sente dificuldade, ele, de alguma forma, se aproxima da situação que o próprio Sérgio enfrenta no colégio”, ressalta o professor.

Ilustração do colégio feita por Raul Pompeia na edição de “O Ateneu”, da coleção Clássicos Zahar (crédito: divulgação editora Zahar)

Na história, o protagonista fica isolado no colégio ao contrair sarampo. Desta forma, é testemunha de um incêndio que destrói o Ateneu. “(…) O ocorrido tem um sentido pessoal, representa esse rito de passagem para o Sérgio. E sentido social: é o fim do império e uma revitalização por meio da república que se aproximava”, resume Marcílio.

Link:
Audiolivro do Ateneu (também em domínio público).

Transcrição do Áudio

Música “A moda da carranquinha”, de Villa-Lobos, tocada por Anna Stella Schic, fica ao fundo.

Fernando Marcílio:
“O meio, filosofemos, é um ouriço invertido: em vez da explosão divergente dos dardos – uma convergência de pontas ao redor”. Eu acho muito interessante a gente pensar nessa imagem do ouriço invertido, é como se os espinhos fossem voltados para dentro. E é isso: o indivíduo está dentro de uma sociedade que tem pontas sobre ele, sempre pronta a uma agressão, sempre pronta a feri-lo. E essa é a luta que o indivíduo tem de travar para ter a sua vida com a menor ferida possível. Essa é a ideia do livro.

Meu nome é Fernando Marcílio, eu sou professor de literatura. Dou aula hoje na unidade Tamandaré, do Anglo, de preparação para os vestibulares e para o Enem. E há 23 anos eu tento transmitir aos alunos a paixão que eu tenho por leitura e pela literatura.

Vinheta: “Livro Aberto: obras e autores que fazem história”

Som da marca Claro

Música “Lundu para piano” (modinha imperial), tocada por Francisco Mignone, fica de fundo

Marcelo Abud:
“O Ateneu”, de Raul Pompeia, foi publicado em 1888 e está em domínio público. Neste Livro Aberto, a obra é analisada pelo mestre em teoria literária pela Unicamp e professor do Anglo, Fernando Marcílio.

Fernando Marcílio:
Tem gente que lê esta obra “O Ateneu” como se fosse um romance inclusive autobiográfico. Isto porque o Raul Pompeia também estudou em um colégio interno, então as pessoas costumam fazer também essa associação. O colégio onde ele estudou era um colégio muito famoso, como é também na ficção, no romance, o colégio Ateneu. Mais ainda, o colégio onde ele estudou chamava-se colégio Abílio, porque o proprietário era o educador brasileiro que, claro, existiu chamado Abílio César Borges e o colégio na ficção, onde o Sérgio estuda, se chama Ateneu, portanto também começa com a letra A. E assim como o diretor do colégio onde estudou Raul Pompeia na vida real era Abílio, o diretor do colégio Ateneu onde estuda o narrador Sérgio também tem o seu nome iniciado com a letra A, que é o Aristarco.

Marcelo Abud:
Marcílio concorda que essas coincidências permitam que se faça associação com algum componente autobiográfico.

Fernando Marcílio:
Mas isso não nos permite dizer que o livro seja autobiográfico, porque eu acho que isso reduz um pouco a importância do Sérgio como personagem e seu significado. O que o Raul Pompeia reuniu ali foi uma série de aspectos não só individuais, que dizem respeito a ele ou não, mas a indivíduos de uma forma geral, quanto sociais. O personagem tem uma significação maior do que simplesmente ser a reprodução de uma trajetória pessoal, individual.

Música: “O Ateneu” (Fernando Brant e Milton Nascimento)
“A paixão veio incendiar / Matar a dor / Que há nas paredes / Que há nos porões”

Marcelo Abud:
O realismo-naturalismo tem alguns traços próprios, como, por exemplo, o determinismo mesológico, que trata da influência do meio sobre o indivíduo.

Fernando Marcílio:
O meio, que nesse caso é o colégio interno Ateneu, exerce influência sobre a formação do indivíduo, principalmente o Sérgio, mas também nós temos os outros alunos que são influenciados por esse meio.
Tem outros traços do naturalismo que estão muito presentes aqui. Um deles é a temática da sexualidade. O naturalismo enveredava muito pela abordagem do comportamento humano a partir de aspectos sexuais e nós temos muito isso no romance “O Ateneu”. Nós estamos falando de jovens adolescentes em que a questão da sexualidade se coloca de maneira muito natural, como a concebiam mesmo os naturalistas. Muitas vezes o naturalismo enveredava por essa temática também para chocar os leitores e isso tem no Ateneu, essa tendência a chocar os padrões morais mais conservadores da sociedade da época.

Música: “O Ateneu” (Fernando Brant e Milton Nascimento)
“Vermelha paixão / Essa luz primeira / Que nos ascendeu / Rebelião (rebelião)”

Fernando Marcílio:
Mas há um aspecto do Ateneu muito importante que nós não temos tão fortemente em outras obras naturalistas, que é o que se chama de escrita artística, ela foi criada, foi concebida na Europa. Era a ideia de que para você escrever um romance, por exemplo, você tinha que ter uma linguagem erudita, elaborada, e isso nós temos no Ateneu. Queria dizer que o aluno não desista diante desse obstáculo, porque justamente essas obras que representam dificuldade de leitura que acrescentam alguma coisa para o aluno.

Som de página de livro sendo virada

Trecho do audiolivro “O Ateneu”, gravado por Leni para Librivox, e disponível em domínio público:

“A história do desenvolvimento humano nada mais é do que uma disciplina longa de sensações. A obra de arte é a manifestação do sentimento. Dividindo-se as sensações em cinco espécies de sentidos, devem os sentimentos corresponder a cinco espécies e igualmente as obras de arte.”

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
Para Marcílio, o discurso em defesa da arte presente em “O Ateneu” pode ser um aspecto cobrado em exames. O professor destaca que a escrita artística como expressão do esteticismo dialoga com o momento atual.

Fernando Marcílio:
A reafirmação do direito de expressão, do direito à própria criação, o respeito à arte, que em muitos países, como por exemplo o nosso, não existe. Então, essa é uma luta constante, é um dos aspectos que torna essa obra duradoura. Mas vamos só deixar claro que quando o Raul Pompeia defende a arte, ele a defende para um círculo estrito de pessoas, porque ele é também um homem do seu tempo. E, naquele momento, está surgindo o parnasianismo. E o parnasianismo é uma estética que se expressa através de uma linguagem da escrita artística, da erudição, da elaboração, um vocabulário muito refinado, “dicionaresco”, e o Raul Pompeia é um seguidor desse tipo de concepção e, para ele, uma das formas de manifestar esse respeito pela arte não é a democratização dos meios de expressão, como a gente pensa hoje. Só aqueles que têm estudo, que têm refinamento é que podem praticar a arte. Então, você veja que embora a gente possa tomar essa reflexão que o Raul Pompéia lança no livro como um ponto de partida para um diálogo, isso não significa que necessariamente tenhamos que chegar às mesmas conclusões que ele chegou.

Som de página de livro sendo virada

Trecho do audiolivro “O Ateneu”, narrado por Marcílio.

“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso.”

Som de página de livro sendo virada

Fernando Marcílio:
O livro fala sobre as dificuldades que um adolescente enfrenta num colégio. Para figurar, para representar bem essas dificuldades o que que o narrador faz? Torna a sua escrita difícil, árdua para o leitor. Assim quando o leitor sente dificuldade para a leitura, ele de alguma forma se aproxima das dificuldades que o próprio Sérgio enfrenta no colégio. Então, o estilo usado tem tudo a ver com aquilo que o romance quer transmitir.

Música: “Incêndio” (Pedro Luís), com Ney Matogrosso
“Fogo, fogo, fogo, água / Incêndio nas ruas / Bomba, bomba, bomba, praça / Vielas, ratos, figuras nuas”

Fernando Marcílio:
Esse colégio que rui é o próprio império que rui. E é nesse sentido que a gente até pode estabelecer uma associação entre o Aristarco e a figura do imperador na época, que era o Dom Pedro II. Esse homem solitário, no meio dos escombros do seu colégio, pode ser uma alusão à solidão de um monarca do meio de um regime que está desmoronando.

Então, o incêndio tem um sentido pessoal, representa esse rito de passagem para o Sérgio, e sentido social. É o fim do império e uma revitalização através da república, que se aproximava.

Música “Lundu para piano” (modinha imperial), tocada por Francisco Mignone, fica de fundo

Marcelo Abud:
Em “O Ateneu”, Raul Pompeia recria o colégio interno para tratar dos dilemas da adolescência. Para isso, utiliza uma escrita que deforma o passado de maneira artística e intencionalmente.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Livro Aberto do Instituto Claro.

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