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“Nove Noites” é o sexto livro do carioca Bernardo Carvalho. Nele, o autor volta a tratar de um desaparecimento misterioso, tema recorrente em sua obra. A investigação dessa vez é sobre a morte do antropólogo norte-americano, Buell Quain.

Aos 27 anos de idade, em 1939, ele se suicidou após a estada em uma aldeia indígena brasileira. Sem motivo aparente, Quain se enforcou na frente de dois indígenas que o acompanhavam na volta para a cidade de Carolina, no estado de Tocantins.

Retrato de um fantasma: na foto tirada no jardim do Museu Nacional, aparecem Lévi-Strauss, Heloísa Alberto Torres e todos que integravam o grupo de pesquisa, mas Buell Quain está ausente (crédito: acervo da Seção de Arquivos do Museu Nacional/UFRJ)

 

“Isso me fascinou muito: a ideia do representante da razão e da ciência ser contaminado pelo seu objeto de estudo, a ponto de poder ser destruído”, afirma Bernardo Carvalho, em entrevista ao Instituto Claro nesta edição do podcast Livro Aberto.

Para tentar desvendar o que teria levado o antropólogo a esse ato, o autor utiliza diferentes estilos literários, o que lhe permite transitar entre a ficção e a realidade. Em “Nove Noites”, há cartas, páginas de anotações de um diário e reproduções fotográficas.

O fato de retratar um acontecimento às vésperas da 2ª Guerra Mundial, no momento em que o Brasil estava vivendo o período da ditadura Vargas, pode ser algo relevante para uma prova de vestibular. O autor acredita que há questões da atualidade que lembram aquele período.

“[A ditadura Vargas] é um Estado obviamente anti-intelectual, porque as ideias ameaçam. Mas o que tem a ver com a própria sociedade brasileira é como os brasileiros podem ser racistas e xenófobos. O que esse antropólogo representa, para mim, é essa desconfiança quase fantasmagórica do outro como inimigo.”

Buell Quain, acervo da Casa de Cultura Heloísa Alberto Torres — Iphan (crédito: reprodução do livro)

 

Ainda no áudio, Carvalho cita porque vê uma aproximação entre a antropologia e a literatura que faz; cita detalhes da obra e o que ela tem de atual, apesar de tratar de um caso que aconteceu em 1939; e lê um trecho de “Nove Noites”.

Transcrição do áudio:

Bernardo Carvalho:
O título se refere, na verdade, a nove encontros, e que esse sujeito, que é um dos narradores do livro, teve contato final com esse suicida, o antropólogo americano.

Meu nome é Bernardo Carvalho. Eu sou escritor, sobretudo de romances.

Som de página de livro sendo virada

Vinheta: “Livro Aberto – Obras e autores que fazem história”

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundoMúsica instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
“Nove Noites” é o sexto livro de Bernardo Carvalho. A história gira em torno da misteriosa morte de um antropólogo norte-americano, que aos 27 anos de idade, em 1939, se suicida após uma passagem por aldeia indígena no Tocantins.

Bernardo Carvalho:
Ele é um livro que é dividido em duas partes intercaladas. Uma parte é uma carta escrita por um personagem ficcional, mas baseado em um personagem real. E a segunda parte, em princípio, seria narrada pela pessoa que está fazendo a pesquisa do livro, enfim, que contaria os bastidores do livro e, nesse sentido, essa pessoa se assemelha muito a um jornalista, a um repórter. O livro é cheio de armadilhas formais, armadilhas narrativas. E isso tem a ver com a literatura que eu faço normalmente e o tipo de literatura que me atrai também.

Música: “O Novo” (Reynaldo Bessa)
“Quero seguir contra todas essas tortas setas / Que pensam que me indicam onde estão as metas”

Bernardo Carvalho:
E no caso da parte que é narrada, em princípio, por esse pesquisador, investigador, jornalista, autor, eu, enfim… Conforme o leitor se aproxima do final do livro, essa parte vai se revelando mais alucinada do que a parte que, em princípio, seria a parte da ficção. Então, quer dizer, essa aparente simplicidade é como se as frases, por mais simples que elas forem, por mais curtas e tudo mais, podem se desdobrar, elas mesmas, em parágrafos ou até mesmo em outros romances.

Marcelo Abud:
Assim como em outros livros que escreveu, em “Nove Noites”, Bernardo Carvalho traz alguns personagens que estão envoltos com um desaparecimento em circunstâncias misteriosas.

Bernardo Carvalho:
Tem a ver com a perplexidade infantil do mundo e das coisas, não só em relação à morte, essa coisa do desaparecimento, mas em relação aos próprios personagens, em não entender direito o que que significa ser uma pessoa. Porque, na verdade, a representação de um personagem real, de fato, a fundo seria uma coisa que jamais poderia ser coerente ou coesa.

Marcelo Abud:
Personagem central de “Nove Noites”, Quain foi um etnólogo. Bernardo Carvalho vê semelhanças entre um estudioso de outros povos e culturas e a literatura que realiza.

Bernardo Carvalho:
E o que acontece com a boa antropologia é que essas certezas são esfaceladas, essas certezas nas quais a gente se baseia. Se a gente continuar fechado, dentro de uma sociedade só, criando bodes expiatórios que são exteriores a essa sociedade, tudo isso vai por água abaixo na hora que você topa aceitar a imagem que o espelho do outro te remete. Eu acho que isso é uma procura da literatura que eu quero fazer também.

Marcelo Abud:
Algumas frases do livro debatem essa visão antropológica da literatura. Por exemplo [som de página de livro sendo virada]: “As histórias dependem, antes de tudo, da confiança de quem as ouve e da capacidade de interpretá-las”. Outra [som de página de livro sendo virada]: “Quando nos olhamos, reconhecemos no próximo o que em nós tentamos esconder”.

Bernardo Carvalho:
Pra mim, essa é a melhor literatura que se faz e que se fez no mundo até hoje. É uma literatura que em vez de procurar se adequar às normas, às regras que foram previamente estabelecidas, na verdade, procuram um lugar que é um lugar desconhecido.

Marcelo Abud:
Esse território do desconhecido permite que se percorram vários estilos. Em “Nove Noites”, há cartas, páginas de anotações de um diário e reproduções fotográficas.

Bernardo Carvalho:
Então, as várias formas têm a ver com isso: você usar todos os meios possíveis para tentar se embrenhar por esse caminho que você não conhece.

Por exemplo, tem uma fotografia de grupo no Museu Nacional, onde está a diretora do Museu Nacional, o Levi-strauss e outros antropólogos. Todos conheciam o Buel Quain, que é o protagonista do meu livro, o objeto do meu livro que desapareceu… Então, é uma fotografia como se fosse o retrato de um fantasma. Está todo mundo que conheceu ele, que convivia com ele na época, menos ele. Então, esta fotografia tem um significado de morte, de ausência, de desaparecimento, que acrescenta um sentido ao livro.

Música: “Retrato em Preto e Branco” (Tom Jobim e Chico Buarque), com Chico Buarque
“Com seus mesmos tristes velhos fatos / Que num álbum de retratos / Eu teimo em colecionar”

Bernardo Carvalho:
E a ideia da alternância entre carta e a investigação jornalística (entre aspas), tinha um pouco essa vontade de confrontar dois estilos que parecem opostos e que, no final das contas, se misturam. E a ficção acaba contaminando muito mais a parte que parecia objetiva; essa parte jornalística (entre aspas), ela acaba virando a mais ficcional, mais alucinada.

Música: “Retrato em Preto e Branco” (Tom Jobim e Chico Buarque), com Tom Jobim
“Novos dias tristes, noites claras / Versos, cartas, minha cara / Ainda volto a lhe escrever”

Bernardo Carvalho:
E, logo no início dessa pesquisa, eu descobri essa figura do Manoel Perna, que é o autor das cartas. Foi o último homem branco que teve contato com o antropólogo, antes do suicídio dele.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
“O que agora lhe conto é a combinação do que ele me contou e da minha imaginação ao longo de nove noites” (Manoel Perna, em “Nove Noites”)

Bernardo Carvalho:
O enredo mesmo, o objeto do livro, é um antropólogo americano, muito jovem, brilhante, muito arrogante também, ao mesmo tempo, que vem para o Brasil para estudar os indígenas brasileiros e, quando ele entra em contato com os índios, é como se ele fosse contaminado, talvez por esse contato com o outro. Isso me fascinou muito também, a ideia do representante da razão e da ciência ser contaminado pelo seu objeto de estudo, a ponto de poder ser destruído.

Marcelo Abud:
Bernardo Carvalho lê um trecho do livro.

Som de página de livro sendo virada

Bernardo Carvalho:
“Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado.

Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergunte aos índios. Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã, mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia receberá uma resposta diferente. A verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela suposição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade. Virá escorado em fatos que, até então, terão lhe parecido incontestáveis. Que o antropólogo americano Buell Quain, meu amigo, morreu na noite de 2 de agosto de 1939, aos 27 anos. Que se matou sem explicações aparentes, num ato intempestivo e de uma violência assustadora.

Música: “Fragile” (Sting)
“Um ato assim pode acabar / Com uma vida e nada mais / Porque nem mesmo a violência / Destrói ideais”

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
O brutal suicídio do antropólogo norte-americano aconteceu às vésperas do início da segunda guerra mundial.  Esse pode ser um ponto de atenção para os exames de vestibular, já que, para o autor, há semelhanças que aproximam o momento atual daquele cenário, em que, no Brasil, vivia-se a ditadura Vargas.

Bernardo Carvalho:
É um Estado que é obviamente anti-intelectual, porque as ideias ameaçam, mas o que tem a ver com a própria sociedade brasileira, eu nunca tinha percebido antes, como os brasileiros podem ser racistas e xenófobos. O que esse antropólogo representa, para mim, é essa desconfiança quase fantasmagórica do outro como o inimigo.

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
Ao misturar ficção e investigação, Bernardo Carvalho utiliza a história do antropólogo para defender que o campo das ideias só acontece efetivamente se envolver diferentes perspectivas e contato com outras culturas.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Livro Aberto, do Instituto Claro.

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