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O livro “Ponha-se no seu lugar”, de Ana Pacheco, marca o retorno das publicações da série Vaga-Lume, depois de 13 anos. Criada na década de 1970 e com mais de uma centena de títulos, a coleção é um dos estímulos à leitura junto ao público infantojuvenil. A nova obra é inspirada em conto do russo Nikolai Gogol, escrito no século XIX. Como o funcionário de São Petersburgo, que perde o nariz e descobre que o órgão tem vida própria, na releitura de Pacheco, o pré-adolescente Lucas passa por situação semelhante.

Ana Pacheco e a filha Sofia: inspiração para escrever novas histórias (crédito: acervo pessoal)

A autora diz que lembrou da história clássica ao se deparar com notícias de jovens que se submetem a dezenas de cirurgias, buscando a aparência da boneca Barbie ou do namorado dela, o boneco Ken. “Não é um tema leve. São jovens que arriscaram sua saúde. Na história do Ken norte-americano, ele quase ficou cego; depois perdeu o olfato de tanto operar o nariz. Quer dizer, histórias horrorosas, mas que eu acho que vale a pena trazer para debate”, explica.

Nariz empinado?

Lucas é um menino privilegiado que estuda em escola de elite e não está acostumado a perder nada. De repente, ele vê seu nariz se tornar independente e fazer sucesso entre colegas do colégio. O adolescente começa, então, uma aventura para reconquistar o órgão e recolocá-lo no lugar.

“Ele diz que essa falta não se esconde como se esconderia a falta de um dedo do pé dentro do sapato. E aí o caminho muito errado que ele toma é o de tentar chamar a atenção pro corpo. Tem a ideia de preencher as faltas por um caminho que gera muitas outras faltas, muitas outras sensações de vazio, que é esse de se tornar uma mercadoria de si mesmo”, analisa a autora.

Transcrição do Áudio

Transcrição do áudio:
Música instrumental, de Reynaldo Bessa, fica de fundo

Ana Paula Pacheco:
Eu comecei a pensar nesse livro quando eu li as reportagens sobre jovens que faziam modificações nos seus corpos, intervenções cirúrgicas. Eu fiquei muito impressionada e comecei a fazer uma pesquisa, porque mesmo o corpo se torna uma mercadoria, e que precisa ser exibido…
Meu nome é Ana Paula Pacheco, eu sou escritora e professora de literatura na USP e esse é meu primeiro livro juvenil.

Vinheta: “Livro Aberto – obras e autores que fazem história”

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
Depois de mais de uma década, o público juvenil volta a contar com um título inédito da série “Vaga-Lume”: “Ponha-se no seu lugar!”.
A autora, Ana Pacheco, tem na própria coleção uma influência em sua trajetória como pesquisadora e professora.

Ana Paula Pacheco:
Li muitos livros da Vaga-Lume. Ela circulava pelas escolas. Tem uma história muito linda que o seu idealizador, o Jiro (Takahashi), conta – porque é um trabalho editorial junto com os professores e com um pensamento sobre a educação pública. Então, como muitas crianças, eu li “A ilha perdida”, da Maria José Dupré; e também os livros, em especial, do Marcos Rey, “O mistério do 5 estrelas”, por exemplo; às vezes com personagens inusitados na literatura, menos representados que ele escolhia pra protagonizar suas histórias.

Marcelo Abud:
Para gerar interesse, a escritora aborda um tema que está na pauta das discussões de pré-adolescentes.

Ana Paula Pacheco:
A gente, quando não convive com eles, tem ideias preconcebidas do que pode ser dito, o que pode ser discutido. E de fato, não, assim, os jovens têm uma abertura pra curiosidade que o mundo, às vezes, vai fazendo a gente perder: pra investigação, pra experiência, pra pesquisa…

Abertura do programa “Hora do Faro” (TV Record)

Rodrigo Faro: Mais um jovem brasileiro enfrentou dezenas de cirurgias plásticas pra ficar igualzinho a esse boneco aqui, o Ken, o famoso namorado da Barbie. Ele não é o primeiro brasileiro a fazer isso, porque, na verdade, isso está virando moda. Será que vale a pena arriscar a vida em cirurgias plásticas pra parecer alguém?

Ana Paula Pacheco:
Não é um tema leve. Esses jovens que se arriscaram a mudar o corpo por um vazio que precisava ser muito preenchido e não era nunca. São jovens que arriscaram sua saúde. A história do Ken, norte-americano, ele quase ficou cego; depois perdeu o olfato de tanto operar o nariz; que dizer, histórias horrorosas, mas que eu acho que vale a pena trazer pra debate. De fato a ideia de a gente precisar ser sempre novo e sempre também já a novidade estar descartável, é algo que a gente precisa conversar, né? E poder também entender os limites dessa crise de identidade, quais são os caminhos pra lidar com isso.
E no livro, por exemplo, o Lucas, quando perde o nariz, começa a fazer as modificações no corpo. Então tem uma ideia de uma falta muito grande, que está na cara, né, que está estampada; ele está pensando “como que eu vou pra escola sem nariz?”. Ele diz que essa falta não se esconde como se esconderia a falta de um dedo do pé dentro do sapato. E aí o caminho muito errado que ele toma, segundo a narradora, é o de tentar chamar a atenção pro corpo. Porque tem que fazer intervenções, colocando silicone, botox, formas que vão fazendo ele ficar monstruoso. Tem a ideia de preencher as faltas por um caminho que gera muitas outras faltas, muitas outras sensações de vazio, que é esse de se tornar uma mercadoria de si mesmo, né?

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
O livro é uma releitura de um conto russo e conta a história de um privilegiado estudante de uma escola de elite, que não está acostumado a perder nada. De repente, ele vê seu nariz ganhar independência e fazer sucesso entre os colegas do colégio.

Ana Paula Pacheco:
Vem do “Nariz”, do Gogol, que é uma novela lindíssima de 1836. Engraçadíssima! O Gogol tem a capacidade de criar narradores cheios de gestualidade, assim, os narradores – embora eles não sejam de primeira pessoa – eles têm gestos verbais, eles são narradores muito vivos. Essa história sempre ficou muito na minha cabeça, como outras do Gogol, mas quando eu li as notícias sobre esses meninos e meninas que queriam se transformar na Barbie e no boneco Ken, o namorado dela, eu imediatamente associei com o nariz; com essa ideia de que as partes do corpo podem se tornar autônomas, ter uma vida própria, isto é, que o eu, de alguma maneira, está despedaçado, né?

Música: “Barbie Girl” (Claus Norreen / Gustavo Lins / Johnny Pedersen / Karsten Delgado / Lene Crawford / Rene Diff / Soren Rasted / Umberto Tavares), com Kelly Key
Sou a Barbie Girl
Se você quer se meu, namorado
Fica ligado
Presta atenção
Na minha condição
É diferente
Sou muito exigente

Ana Paula Pacheco:
E aí acho que essa gestualidade do narrador do Gogol me fez pensar na Clara, que é a narradora do livro, que é uma menina também – eu fiz questão de coloca-la bem próxima às personagens; é o melhor jeito de a gente entrar nessas questões com quem as vive – e a Clara ela é um pouquinho mais nova do que o menino que perde o nariz, mas ela está interessada nele; tem uma ‘paixonite’ ali e ela tem um irmão que, no início da história, é um arqui-inimigo do Lucas, que perde o nariz. Ela tem essa curiosidade de acompanhar o que está acontecendo; tentar entender… Ao mesmo tempo ela acha que essa é a chance do Lucas melhorar e parar de ter o nariz empinado, já que ele não tem mais nariz, enfim. E ela é uma menina que está se descobrindo como narradora, então, que brinca com as palavras; com o jeito de narrar. E eu achei que isso podia ser gostoso pro leitor.

Som de página de livro sendo virada

Ana Paula Pacheco:
Eu vou ler o comecinho do capítulo que se chama Metamorfose:
Naquela manhã, depois de acordar de sonhos intranquilos, Lucas PPP de Albuquerque Lins, deu um grande bocejo; espreguiçou-se entre os lençóis de algodão egípcio, em sua suíte júnior, na mansão do Jardim Europa e, como de hábito, deu três espirros. Em vez da sensação de alívio normalmente trazida por essa sequência, sentiu um enorme vazio. Parecia que sua alma tinha saído pelas narinas. Lembrou-se do incomodo com uma espécie de cogumelo nascido em sua cara na noite anterior. Justo há dez dias da festa de 16 anos da Florinha.

Som de página de livro sendo virada

Música: “Não vou me adaptar” (Arnaldo Antunes), com Paula Toller e Arnaldo Antunes
Será que eu falei o que ninguém ouvia?
Será que eu escutei o que ninguém dizia?
Eu não vou me adaptar, me adaptar

Ana Paula Pacheco:
Essa menina bolsista, que é a narradora, ela tem um olhar que é o dos jovens que estão ali, mas, ao mesmo tempo, tem algum estranhamento porque a experiência diária dela de vida é outra. Isso a faz mais atenta àquilo que o convívio pode trazer. Talvez, principalmente, a ideia do interesse pelo outro, né, que é algo que ela tem com relação ao Lucas, ainda que ela se decepcione muito com as atitudes dele.

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
Em “Ponha-se no seu lugar”, o leitor vai entender o que acontece quando um garoto de família rica, morador de bairro nobre, sobrinho da diretora do colégio, passa a conviver com a falta.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Livro Aberto do Instituto Claro.

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