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“Água Funda” é um romance escrito por Ruth Guimarães, uma das primeiras escritoras afro-brasileiras a alcançar reconhecimento na literatura nacional. Publicado em 1946, o livro aborda questões como racismo, preconceito e a luta por identidade em uma sociedade marcada pela desigualdade racial.

Segundo o professor, autor de materiais para o sistema Anglo de ensino e mestre em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) Maurício Soares Filho, “Água Funda” contribui para a representatividade e visibilidade da cultura afro-brasileira na literatura nacional.

“Essa discussão a respeito das questões sociais, da exploração do trabalho, da busca pelo lucro desenfreada, independente das condições do trabalhador, isso constitui uma das grandes vantagens, dos pontos positivos do livro. É essa mistura tão fluída, os causos populares da linguagem, da discussão sobre as crenças populares em relação ao folclore, das questões sociais”, analisa.

A história se passa em uma fazenda em São Paulo, onde a protagonista, uma mulher negra chamada Água Funda, luta contra as adversidades da vida e enfrenta o preconceito racial e a discriminação. Além de abordar a desigualdade, o livro também explora temas como espiritualidade, tradições africanas e a conexão com a natureza.

Nascida em Cachoeira Paulista (SP), Ruth Guimarães vive até os 18 anos entre o Vale do Paraíba, no paulista, e o Sul de Minas Gerais. “Considerando a idade que ela tinha, a pouca formação, o lugar específico em que ela vivia, quer dizer, longe de um grande centro, com poucas relações que transcendessem aquele espaço, e, ainda assim, com todas essas limitações, ela se revela uma autora de muitas qualidades”, explica Filho.

O contato com lendas é uma das marcas que Ruth Guimarães leva para a literatura. Em “Água Funda”, o personagem Joca sai em busca da Mãe do Ouro, figura folclórica conhecida nessa região.

“A Mãe de Ouro é capaz de se transformar numa bela mulher, é capaz de se transformar numa bola de fogo e enfeitiça qualquer um que olhar para ela quando ela estiver ali na proteção dos bens”, apresenta o professor.

No podcast, Maurício Soares Filho aponta ainda alguns recursos estilísticos do livro, como a valorização da linguagem e da cultura caipira. O professor aborda também a importância da escolha da obra para o vestibular da Fuvest. “A hegemonia branca do pensamento e da cultura acabou. Ela não nos satisfaz mais. Ela está, no mínimo, precisando urgentemente dividir espaço com a cultura negra, com todo esse universo indígena. Eu preciso ampliar a minha percepção do que é ser brasileiro, do que se fala aqui, quais são os temas que nos são caros. Acho que ‘Água Funda’ contribui nesse sentido, conclui Filho.

Crédito da imagem: Pintura de fazenda de café do Vale do Paraíba – José Rosael / Hélio Nobre – Museu Paulista da USP

Transcrição do Áudio

Música: Introdução de “O Futuro que me Alcance”, de Reynaldo Bessa, fica de fundo

Maurício Soares Filho:

A Ruth Guimarães é realmente uma figura muito surpreendente no seu trabalho em prosa. No caso de “Água Funda”, considerando a idade que ela tinha, a pouca formação, o lugar específico em que ela vivia, quer dizer, longe de um grande centro, com poucas relações que transcendessem aquele espaço, e ainda assim, com todas essas limitações, ela se revela uma autora de muitas qualidades.

Meu nome é Maurício Soares filho, sou autor e professor do sistema Anglo de ensino e mestre em literatura brasileira pela USP. E fiz uma análise de “Água Funda”.

Vinheta: Livro Aberto – Obras e autores que fazem história

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:

“Água Funda” é o primeiro romance de Ruth Guimarães e foi lançado em 1946. Conhecida pela valorização da linguagem caipira, a escritora passa a maior parte da infância no Sul de Minas. Como pesquisadora, leva essa vivência para seus livros e faz do folclore uma das matérias-primas de sua obra.

Em “Água Funda”, por exemplo, Joca sai em busca da Mãe do Ouro, personagem folclórica da região em que a autora cresceu.

Maurício Soares Filho:

E a Mãe de Ouro é capaz de se transformar numa bela mulher, é capaz de se transformar numa bola de fogo e enfeitiça qualquer um que olhar para ela quando ela estiver ali na proteção dos bens. Supostamente protege regiões em que haja riquezas ali na terra contra os que vão tentar explorar.

Na verdade, o narrador fala sobre o quanto ele acredita que muitos dos acontecimentos estão relacionados ao fato da Mãe de Ouro ter sido desafiada e o quanto que as tragédias, os problemas que esses personagens enfrentam, estão, com certeza, relacionados à ação dessa figura folclórica.

Marcelo Abud:

A narrativa de “Água Funda” se passa na fazenda Nossa Senhora dos Olhos d’Água e na cidade de Pedra Branca, no sul de Minas Gerais, entre o final do século XIX e início do século XX.

Maurício Soares Filho:

Nós temos como pano de fundo um Brasil em transformação. Temos o fim da escravidão e o início da mão de obra assalariada, exatamente no momento em que os engenhos de cana-de-açúcar são substituídos por usinas.

Essa discussão a respeito das questões sociais, da exploração do trabalho, da busca pelo lucro desenfreada, independente das condições do trabalhador, isso constitui uma das grandes vantagens, pontos positivos do livro. É essa mistura tão fluída, os causos populares da linguagem, da discussão sobre as crenças populares em relação ao folclore, das questões sociais que envolvem essas personagens. Então, há uma riqueza grande de temas tratados aí.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:

O professor destaca os recursos narrativos que tornam “Água Funda” um romance que prende a atenção de quem lê.

Maurício Soares Filho:

O primeiro aspecto é como o suspense é mantido ao longo do livro. O narrador, para enredar o leitor, ele dá um jeito de lançar um mistério. Há um cuidado na criação da narrativa. Então tem frases ao longo do livro todo: “Mas o Bugre não foi o primeiro, antes não tivesse querido”, “O pior é que foi sem motivo”, “Depois aconteceu aquilo na usina”. Então o tempo inteiro a narrativa por meio destas frases, ela vai deixando pistas e empurra o leitor pra frente, pra que a gente saiba que motivo é esse, afinal? Qual era o aviso? Mas esse moço vai ficar, o que que vai acontecer? Ou seja, eu tô entendendo que a Ruth tinha na cabeça uma consciência de que ela precisava utilizar recursos narrativos pra construir um livro que fosse interessante, que funcionasse como narração.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:

“Água Funda” passa a fazer parte da lista de livros da Fuvest. Maurício Soares Filho aponta aspectos que podem ser solicitados no vestibular.

Maurício Soares Filho:

É um livro que oferece muita possibilidade para perguntar figuras de linguagem, para apontar momentos metalinguísticos. A outra questão é sobre a fusão cultural que está presente aí e de como as crendices populares, por exemplo, se misturam ao cristianismo, como o cruzamento dessas culturas forma uma obra representativa da identidade brasileira.

A hegemonia branca do pensamento e da cultura acabou. Ela não nos satisfaz mais. Ela tá, no mínimo, precisando urgentemente, né, a sociedade trabalha para isso, dividir espaço com a cultura negra, com todo esse universo indígena. Eu preciso ampliar a minha percepção do que é ser brasileiro, do que se fala aqui, quais são os temas que nos são caros. Acho que “Água Funda” contribui nesse sentido.

Marcelo Abud:

Outro recurso narrativo no romance é o uso de descrições que despertam diferentes sensações.

Maurício Soares Filho:

Cheiro, sabor, uma sensação mais táctil ou visual. Isso se aproxima, né, é impossível não pensar no Guimarães Rosa, quer dizer, esse olhar para o interior, para os diferentes sotaques, para as línguas que vão se formando ali, crenças, plantas, esse olhar parece que é um tópico mesmo desse momento da literatura brasileira, em olhar para o interior do Brasil e tentar olhar para os vários brasis que a gente encontra dentro desse país. E valorizá-lo, mostrando os cheiros, sabores e sons desse mundo que entram no leitor por uma outra via, nem sempre é pelo intelectual – um livro te pega, né, pela intelecção, pela compreensão da história –, mas é pela forma como a linguagem vai te envolvendo e te faz se sentir dentro desse universo.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:

O professor seleciona e lê um trecho do livro que demonstra como a linguagem utilizada por Ruth Guimarães estimula as mais diversas sensações.

Maurício Soares Filho:

“A noite estava quente e abafada por causa do mormaço que descia pesado como cobertor grosso. Joca virou-se na cama a madorna porque tinha passado só serviu para deixar mais calor no corpo dele. Abriu e fechou as mãos suadas, passou os dedos pela garganta, puxou bem a roupa no peito e ficou de costas, ansiado. Fechou os olhos, que arderam de sono, virou-se para o canto, virou-se para a beirada, os pernilongos cantaram… ‘iiiii’. Cobriu a cabeça com o lençol, sufocava, descobriu a cabeça e tornou a virar-se. Aí despertou de uma vez e sentou-se na cama, escutou a serenata dos sapos da lagoa, passava um pouquinho e cantava mais baixo ‘au ui ai ui au’, e as pererecas tocavam reco-reco escondidas embaixo do igapé ‘ra-ra-ra raaaaa ra-ra-ra raaaaa’”.

Som de página de livro sendo virada

Maurício Soares Filho:

Então olha só, eu acho incrível como ela mistura som, reproduzindo os pernilongos e os sapos “au, ui, o reco-reco das pererecas”. Isso é absolutamente sinestésico, né, e multissensorial. É um recurso utilizado aqui para colocar o leitor para muito além da compreensão da história, para percepção de todas essas outras manifestações desse ambiente.

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:

“Água Funda” valoriza a oralidade por meio de ditos populares e causos repletos de superstição.

Marcelo Abud para o Livro Aberto, do Instituto Claro.

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