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O romance “A Relíquia”, do português Eça de Queirós, traz uma série de situações e intempéries para promover um diálogo entre a verdade e a fantasia e mostrar como essa primeira pode ser construída. Para entender de que forma o autor surpreende, ao se dedicar a uma literatura realista e, ao mesmo tempo, repleta de situações inventadas, neste Livro Aberto, o Instituto Claro conversou com o professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), Helder Garmes.

Na história, o protagonista Teodorico Raposo, apelidado de “Raposão”, faz de tudo, mesmo que contrariado, para agradar a tia –responsável por sua guarda após a perda de seus pais. Ele, por exemplo, finge ser religioso para mantê-la feliz e conquistar sua herança. “Essa ideia entre realidade e fantasia está na dinâmica da própria personagem, que se divide entre sua vida concreta e o jogo de aparências que ele vai fazer o tempo todo”, afirma Garmes.

Em “A Relíquia”, Teodorico aceita ir a Jerusalém, para trazer uma relíquia para a tia. Sua intenção é viajar e ficar longe da cuidadora, que era muito rígida em relação à sua educação. Na volta, entrega o pacote errado a ela, contendo roupas íntimas de uma das amantes que conhecera durante a viagem. Acaba sendo deserdado e decide se casar por interesse. É a partir desse momento que narra sua saga cheia de fracassos e de falta de ética, mas a transforma em relatos de um vitorioso.

Para o professor, essa ação reforça a epígrafe editada junto ao título do livro: “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”. De acordo com ele, é possível interpretar a frase como o princípio da própria literatura, que trabalha com a fantasia para falar da realidade do mundo.

A questão é que Teodorico não tem princípio ético e, por meio dessa falha de caráter do protagonista, Eça de Queirós satiriza a sociedade portuguesa do século 19 e a mentalidade da burguesia daquela época. “Ela [a burguesia] é apresentada como totalmente individualista e não tem nada que interesse que não seja alcançar a riqueza, não importando como isto se dá.”

A fantasia é o modo leve e agradável escolhido pelo autor para fazer a denúncia dessa falta de escrúpulos da sociedade burguesa. “A verdade é que esse sujeito não tem o menor senso de humanidade, decoro, ética. E acreditar no que ele está falando é muito perigoso.”

Ainda no áudio, o entrevistado revela que um aspecto que mantém “A Relíquia”, de Eça de Queirós, atual é o fato de utilizar a fantasia para desnudar a construção de verdades.

Para ele, o princípio das fake news está totalmente conectado com este livro. “Ele [Teodorico] está falando assim: ‘Esquece a realidade. Não tem realidade. Eu crio a realidade e eu digo pra você como vai ser o mundo, em meu benefício’”, conclui.

Helder Garmes, à esquerda, durante entrevista ao Instituto Claro (crédito: Daniel Grecco)

 

Créditos:
As músicas utilizadas na edição do podcast, por ordem de entrada, são: “Egotrip” (Evandro Mesquita, Antonio Pedro, Ricardo Barreto e Patrícia Travassos), com Blitz; “Sonata nº 37 em Mi Menor: Allegro”, Carlos Seixas e Marcelo Fagerlande; “Eu sou melhor que você” (Maurício Pacheco), com Moreno Veloso; “Burguesia”, Cazuza; e “Entre a cruz e o inferno”, Daniel Gonzaga. A música de fundo é criada e tocada por Reynaldo Bessa.

Atualizada em 16/8/2019 às 12h37.

Crédito da imagem: reprodução capa da obra “A Relíquia”

Transcrição do áudio:

Vinheta: “Instituto Claro”

Vinheta: “Livro aberto: obras e autores que fazem história”

Marcelo Abud:
O romance “A Relíquia”, do português Eça de Queirós, trata de negociações que promovem um diálogo entre a verdade e a fantasia.

Para o entrevistado deste Livro Aberto, Helder Garmes, professor de literatura da USP, o livro surpreende por trazer situações com muita ironia, apesar de ser parte do realismo.

Helder Garmes:
Ele está trabalhando nesta chave, entendendo que está fazendo ficção, tem clareza disso, mas, ao mesmo tempo, querendo falar da realidade concreta de Portugal.

Marcelo Abud:
Os romances de Eça de Queirós tratam da realidade de Portugal do século XIX. Assim como no anterior, “O Crime do Padre Amaro”, em “A Relíquia”, o autor tenta desconstruir alguns mitos cristãos. Tudo com muito escracho e um tom descontraído.

Helder Garmes:
É um narrador que conta a história dele mesmo. Depois que tudo aconteceu, ele passa a contar essa história de como ele venceu na vida. E ele está tentando te convencer de alguns princípios. Ele vai tirar uma filosofia de vida desse processo dele. E, no fundo, ele é um sujeito que fica órfão muito cedo e vai ser criado por uma tia muito rica, muito “carola” e que quer que ele seja muito religioso. E ele não é nada religioso, mas está muito interessado na herança dela. Então, ele vai obedecê-la de todas as formas, fingir que é um sujeito muito religioso, mas ele tem uma vida dupla. E aí também tem essa ideia sempre da realidade e a fantasia, na dinâmica da própria personagem: a vida concreta dele e o jogo de aparências que ele vai fazer o tempo todo.

Música: Egotrip, Blitz
“Eu me adoro / Eu não consigo te ver sem mim / eu sou o cara mais gentil que eu conheço / Eu te amo / Eu me adoro / Eu não consigo te ver sem mim”

Marcelo Abud:
No livro, a história é narrada por Teodorico, que aceita ir a Jerusalém, para trazer uma relíquia. Na verdade, a intenção do protagonista é viajar e ficar longe da tia, rígida em relação à educação dele. O professor lê um trecho que demonstra o tom de sarcasmo presente em toda a obra.

Helder Garmes:
A cena é a seguinte: ele chegou numa pensão em Jerusalém. Na pensão, tem uma inglesa maravilhosa e ela tem um companheiro de trabalho, que não fica claro se é um companheiro mesmo dela ou só de trabalho, mas eles estão ali na pensão. E ele fica seduzido por ela e daí, quando ela vai tomar banho no quarto, ele vi espiar pelo buraco da fechadura. E daí tem esta cena aqui:

Música de fundo: Sonata nº 37 em Mi Menor: Allegro (Carlos Seixas, Marcelo Fagerlande)

Helder Garmes:
Não resisti; descalço, em ceroulas, saí ao corredor adormecido; e cravei à fechadura da sua porta um olho tão esbugalhado, tão ardente, que quase receava feri-la com a devorante chama de seu raio sanguíneo… Enxerguei num círculo de claridade uma toalha caída na esteira, um roupão vermelho, uma nesga de alvo cortinado do seu leito. E assim agachado, com bagas de suor no pescoço, esperava que ela atravessasse, nua e esplêndida, nesse disco escasso de luz, quando senti de repente, por trás, uma porta ranger, um clarão banhar a parede. Era o barbaças, em mangas de camisa, com o seu castiçal na mão! E eu, misérrimo Raposo, não podia escapar. De um lado estava ele, enorme. Do outro, o topo do corredor, maciço.

Vagarosamente, calado, com método, o Hércules pousou a vela no chão, ergueu a sua rude bota de duas solas, e desmantelou-me as ilhargas… Eu rugi: “bruto!” Ele ciciou: “silêncio!” E outra vez, tendo-me ali acercado contra o muro, a sua bota bestial e de bronze me malhou tremendamente quadris, nádegas, canelas, a minha carne toda, bem cuidada e preciosa! Depois, tranquilamente, apanhou o seu castiçal. Então eu, lívido em ceroulas, disse-lhe com imensa dignidade:

— Sabe o que lhe vale, seu bife? É estarmos aqui, ao pé do túmulo do Senhor, e eu não querer dares escândalos por causa da minha tia… Mas se estivéssemos em Lisboa, fora das portas, num sítio que eu cá sei, comia-lhe os fígados! Nem você sabe do que se livrou. Vá com esta: comia-lhe os fígados!

E muito digno, coxeando, voltei ao quarto a fazer pacientes fricções de arnica. Assim eu passei a minha primeira noite em Sião.

Música: Eu sou melhor que você, (Maurício Pacheco), com Moreno Veloso
“Todo mundo é especial, é original, é o que todos queriam ser / Não basta ser inteligente, tem que ser mais que o outro, pra ele te reconhecer”

Marcelo Abud:
Ao voltar de Jerusalém, em vez de trazer a relíquia verdadeira, Teodorico resolve fazer uma coroa de espinhos falsa, para não gastar o dinheiro. Quando entrega a suposta relíquia à tia, acaba dando a ela o pacote errado, que continha roupas íntimas de uma das amantes que conhecera durante a viagem.

Helder Garmes:
E daí ele vai ficar realmente numa situação complicada, a tia dele vai deserdá-lo. Ele vai ter que ficar vendendo relíquias falsas por um bom tempo, pra se virar. Mas depois ele encontra um antigo colega dele de escola, que é muito rico, mas tem uma irmã muito feia que precisa casar. Daí ele casa com essa mulher e fica “maravilhoso”, fica “tudo bem”. E daí é que ele vai contar a história dele, dizendo como ele se deu bem.

Marcelo Abud:
O pensamento do protagonista se traduz na famosa epígrafe editada junto ao título.

Helder Garmes:
E, na minha percepção essa coisa do “sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”, é que, na verdade, o Eça de Queirós estava falando muito mais da mentalidade burguesa, porque a mentalidade burguesa é totalmente individualista e não tem nada que interesse que não eu ficar rico, não importa como eu fique rico.

Música: Burguesia, Cazuza
“A burguesia quer ficar rica, enquanto houver burguesia, não vai haver poesia”

Helder Garmes:
Qual que é a verdade do livro? A verdade do livro é a denúncia da “inescrupulosidade” da burguesia. A fantasia é um modo leve e agradável que o livro apresenta isso. Você lê um livro, que você morre de rir do começo ao fim, você fica super fascinado pelo personagem até no final, você já está quase que amigo do personagem, achando ele engraçado e tudo mais, só que ele continua sendo um crápula. A verdade é que esse sujeito não tem o menor senso de humanidade, não tem o menor decoro, não tem a menor ética. E acreditar no que ele tá falando é muito perigoso. Porque é acreditar no princípio da mentalidade burguesa de que o que vale é se dar bem, o resto pouco importa. E esse é o tom do livro o tempo todo. E muitas vezes as pessoas não se dão conta. Elas vão lendo ele um pouco a sério e ele nunca é sério, mesmo quando está contando a história de Cristo, sempre está acontecendo uma coisa um tanto absurda.

Música: Entre a Cruz e o Inferno, Daniel Gonzaga
Sou ateu, graças a Deus / Deus me apareceu pra dizer que não existe / Mas quando eu fui cobrar o meu cantinho do Paraíso / Me deram um pedaço de mato dizendo ser um pedaço do Éden

Marcelo Abud:
Para o professor, um aspecto que mantém “A Relíquia”, de Eça de Queirós, atual é o fato de utilizar a fantasia para desnudar a construção de verdades.

Helder Garmes:
Por exemplo, a própria questão da fake news – como você manipula a realidade com fake news – tem tudo a ver com o que ele tá falando aqui. Talvez o princípio da fake news seja um pouco diferente. Não é só a convicção, é a convicção também, porque as pessoas afirmam tudo aquilo com uma convicção, e a repetição. Você repetir qualquer coisa exaustivamente aquilo vira verdade. É uma coisa que está totalmente conectada com este livro. Ele está falando assim: “é assim que você deve fazer. Esquece a realidade. Não tem realidade. Eu crio a realidade e eu digo pra você como é que vai ser o mundo, em meu benefício.

Marcelo Abud:
Considerado o livro mais importante de Eça de Queirós, “A Relíquia” conta com todas as características presentes em suas obras. No livro, o autor é severo e sarcástico, em relação aos moldes sociais de sua época.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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