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“A Cabra Vadia” reúne uma seleção feita por Nelson Rodrigues das crônicas publicadas no jornal “O Globo”, nos anos de 1967 e 1968. Nelas, o dramaturgo admite sua crítica ao cenário político, com visões reacionárias.

A motivação do autor foi a chegada dos militares ao poder, quando passa a se proclamar um “ex-covarde” [título da primeira crônica do livro] e assume seu ponto de vista ideológico.

“Ele acredita que esse seria o momento de parar de ter medo e expor as suas experiências do ponto de vista ideológico”, explica o professor de literatura do Cursinho da Poli, Murilo Gonçalves, ouvido nesta edição do Livro Aberto.

O Professor Murilo Gonçalves no Cursinho da Poli (crédito: Marcelo Abud)

 

De acordo com ele, com a atitude, Nelson Rodrigues se vê isolado, visto que era conhecido como “anjo pornográfico” por tratar de maneira explícita a vida privada, o que fazia com que fosse rejeitado pelos conservadores. Por outro lado, era reacionário e tinha um pensamento de direita, quando se tratava de política, num momento em que a experiência cultural de esquerda prevalecia.

A presença de um livro que se contrapõe aos demais da lista da Unicamp pode ter a intenção de levar ao jovem uma reflexão sobre o fato de o país já ter vivido uma ordem mais conservadora em um passado recente, especula o entrevistado.

Para Gonçalves, o vestibulando deve buscar entender quais os grupos que o escritor e jornalista elegeu como problemáticos e que são alvo nas crônicas. “Ele atacava jovens que se inspiravam em movimentos como Maio de 68, marxistas, a igreja progressista brasileira e os que chamava de ‘grã-finos de esquerda’”.

Outro aspecto presente no livro são as crônicas escritas como entrevistas imaginárias, em que cria situações absurdas envolvendo seus desafetos políticos. Uma cabra acompanha essas conversas, motivo do título da obra .

“A cabra, de acordo com as pesquisas que ele fez, seria um animal que mantém um parceiro fixo. Então, ela não trai. Se não trai, é o animal ideal para acompanhar a entrevista e ratificar, desmentir ou manter posicionamentos definidos em relação à entrevista”. Essas entrevistas imaginárias, segundo o professor, podem ser consideradas como processos que se assemelham às criações das fake news de hoje.

Mesmo se aliando aos militares, Nelson Rodrigues não consegue evitar a censura a algumas de suas peças e nem que, em 1972, o filho Nelsinho Rodrigues fosse detido e torturado pelo regime. Após este fato, o escritor, que até então acreditava que não havia tortura no país, revê o apoio aos militares e passa a defender a anistia ampla, geral e irrestrita aos presos políticos do período. 

Transcrição do áudio:

Murilo Gonçalves:
O Nelson Rodrigues foi uma pessoa que viveu um paradoxo curiosíssimo na vida dele. Por um lado, era entendido como alguém mais liberal, que não era bem visto por pessoas conservadoras. Por outro lado, ou seja, a outra ponta do paradoxo, ele era taxado de reacionário, por ser um sujeito que explicitava abertamente um posicionamento de direita, num momento em que a experiência cultural era mais voltada para uma experiência de esquerda.

Vinheta: “Livro Aberto – Obras e autores que fazem história”

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
Um livro que destoa dos demais que fazem parte da lista do vestibular da Unicamp. É assim a obra “A Cabra Vadia”, de Nelson Rodrigues. Nesta edição, o Instituto Claro ouve o professor de literatura do Cursinho da Poli, Murilo Gonçalves. Ele explica o que pode ser esperado pelo vestibulando em relação às crônicas escritas inicialmente para o jornal “O Globo” entre os anos de 1967 e 1968.

Murilo Gonçalves:
Se festejou muito a chegada dos Racionais na lista da Unicamp e pouca gente acabou notando a chegada do Nelson Rodrigues com um posicionamento completamente contrário às experiências que a gente encontra em muitos livros ali.

Eu acredito que isso possa causar um choque, mas acredito que a Unicamp tenha um projeto para isso. Talvez, na pior das hipóteses, de nos mostrar que a experiência mais conservadora que vivemos no momento contemporâneo já foi vivida em momento anterior. E, talvez, nós tenhamos que aprender a lidar com essa experiência, entender um pouco melhor o que está acontecendo. Não que ela seja positiva, mas, efetivamente, de saber que nós já vivemos ela, ou seja, de mostrar para as pessoas que nós já passamos por isso e que já havia, em outros momentos, pessoas com esse posicionamento que encontramos, hoje, na nossa sociedade.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
As crônicas d o livro foram escritas em um período que antecede o AI-5.

Murilo Gonçalves:
Logo após a subida dos militares ao poder, ele acredita que esse seria o momento em que ele precisa parar de ter medo e expor as suas experiências, do ponto de vista ideológico. O Nelson Rodrigues sempre foi um sujeito mais voltado à direita e, com a subida dos militares, ele encontra as possibilidades para poder colocar, externar isso.

Como não é um romance, é uma sequência de crônicas e algumas delas abordam os mesmos temas, é importante, justamente, que se entenda isso. O grande foco do livro é entender quais são os grupos que o Nelson Rodrigues elegeu como grupos problemáticos da sua época, que são os grupos que ele vai atacar com frequência nas crônicas: os jovens de esquerda, que se inspiravam em experiências dos movimentos, como “Maio de 68”; a igreja progressista, aliás a igreja progressista “sofre muito na mão dele” porque ele cria personagens altamente caricatas. Para ele, existe o “padre de passeata”, que é o padre que faz protestos, e a “freira de minissaia”.

Era muito comum que os colégios católicos fossem conduzidos por freiras e, nesse momento do Brasil, existia uma discussão muito forte sobre a educação sexual nas escolas. E ele achava um absurdo freiras fazerem a iniciação de educação sexual com crianças, por meio de figuras. Ele falava que eram  pequenos cards pornográficos que se mostravam às crianças. Então, ele achava isso problemático. É necessário o vestibulando estar atento à figura da igreja progressista.

Música: “Rebelde sem causa” (Roger Moreira), com Ultraje a Rigor
“Me dão dinheiro prá eu gastar com a mulherada / Eu realmente não preciso mais de nada”

Murilo Gonçalves:
Também, ele vai criticar muito os “grã-finos de esquerda”, pessoas ricas que formulavam saraus de esquerda e ele achava esses “grã-finos de esquerda” altamente esvaziados, pessoas que não estudavam de verdade, pessoas que eram verdadeiros ignorantes políticos.

Música: “Rebelde sem causa” (Roger Moreira), com Ultraje a Rigor
“Não vai dar, assim não vai dar / Como é que eu vou crescer sem ter com quem me revoltar”

Murilo Gonçalves:
Ele acredita que o espectro de esquerda dominou a experiência jornalística brasileira e a coluna “Confissões”, que ele escreve no jornal “O Globo”, é a única coluna corajosa, que expõe as experiências da direita. Muito parecido com a experiência que a gente vê, hoje, na imprensa também. Hoje, se coloca muito que toda imprensa, que até alguns anos atrás era considerada uma imprensa conservadora, como uma imprensa de esquerda. E as pessoas dão uma certa preferência por acreditarem em certos jornais ou circuitos de imprensa menores, de menor projeção.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
O professor ressalta que é importante o leitor estar atento, ainda, a um dos projetos criados por Nelson Rodrigues: a entrevista imaginária.

Murilo Gonçalves:
Ele cria um cenário imaginário, que é um terreno baldio. Nesse terreno baldio, estariam apenas ele, o entrevistado e uma cabra, que ele determina como “cabra vadia”. Inclusive, ele justifica por que é esse o animal que tem que estar no espaço, porque a cabra, de acordo com pesquisas que ele fez, seria um animal que mantém fixos os seus parceiros. Então, a cabra não trai. Se a cabra não trai, a cabra é o animal ideal para acompanhar a entrevista e ratificar ou desmentir ou manter posicionamentos definidos em relação à entrevista. E o que ele faz? Ele faz uma entrevista falsa, com algum desafeto dele. Ele “coloca palavras na boca dessa pessoa”. Lógico, num tom de brincadeira, podemos pensar que é o “avô da fake news”.

Música: “Mentira” (Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle)
“É mentira… tchup tchu, é mentira /ira… tchup tchu, é mentira”

Murilo Gonçalves:
Então, na verdade, no livro, é importante que o aluno leia a crônica que se chama “Terreno Baldio”, em que ele faz uma entrevista imaginária com o Dom Hélder e que ele “coloca absurdos na boca do Dom Hélder”. Inclusive, fechando a crônica dando a entender que Dom Hélder nem acreditaria no Cristo católico, e, sim, ele preferiria algumas simpatias mais de vida privada, que estão muito afastadas da experiência católica.

Marcelo Abud:
Para entender como Nelson Rodrigues apresenta suas ideias nas 84 crônicas presentes em “A Cabra Vadia”, Murilo Gonçalves lê e contextualiza o texto que abre o livro.

Murilo Gonçalves:
A primeira crônica se chama “O ex-covarde” em que ele, digamos assim, anuncia ao leitor efetivamente o posicionamento crítico que vai ser conduzido no decorrer do livro.  Então, é essencial realmente que os vestibulandos leiam essa primeira crônica, porque ela começa com ele dizendo que chegou no jornal onde ele trabalha, na redação, e foi abordado por um dos editores do jornal sobre um comportamento que ele passa a exercer nas crônicas que ele não exercia antes: que é um posicionamento político-ideológico.

Então, eu vou ler um trecho aqui.

Som de página de livro sendo virada

Murilo Gonçalves:
O editor fala pra ele, o Marcelo Soares:

“Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?” Puxo um cigarro, sem pressa de responder. Insiste: – “Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas “confissões”. É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política. Explica: – Por quê?”.

Então nós vamos ter aí um pequeno corte, que ele vai falar que ele pegou um cigarro, pensou e ele vai explicar para o seu editor o porquê que ele passou a abordar política de maneira mais incisiva:

“Começo assim a “longa história”: – “Eu sou um ex-covarde.” O Marcelo ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a TV. Quase tudo e quase todos exalam abjeção”.

Então, ele fala que existe um posicionamento, reparem que, embora se fale de velhos e velhas, mocinhas e mocinhos, o primeiro grupo são “reitores, professores, sociólogos”, ou seja, existe um grupo intelectualizado de esquerda que ele critica. E, lógico, essa ideia de ele ser um “ex-covarde” está muito ligada a uma experiência política, que nós temos, agora, militares no poder, e ele se sente realmente bem mais confortável para poder falar sobre isso.

E talvez um trechinho final da crônica também seja relevante. Ele finaliza a crônica dizendo assim:

“Eis o que eu queria explicar a Marcelo: – depois de tudo que contei, o meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e anunciar de fronte alta: – ‘Sou um ex-covarde.’ É maravilhoso dizer tudo. Para mim, é de um ridículo abjeto ter medo das Esquerdas, ou do Poder Jovem, ou do Poder Velho ou de Mao Tsé-tung, ou de Guevara. Não trapaceio comigo, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito. Mas a tenho. E se há rapazes que, nas passeatas, carregam cartazes com a palavra ‘Muerte’, já traindo a própria língua; e se outros seguem as instruções de Cuba; e se outros mais querem odiar, matar ou morrer em espanhol – posso chamá-los, sem nenhum medo, de ‘jovens canalhas’”.

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
As crônicas reunidas em “A Cabra Vadia” compõem um retrato da cultura e da política brasileiras da década de 1960, pelo ponto de vista reacionário.

Por seu posicionamento no jornalismo, Nelson Rodrigues chegou a ter influência junto aos militares no poder. No entanto, não conseguiu evitar que, em 1972, o filho Nelsinho fosse detido e torturado pelo regime. Após este fato, o escritor, que, até então, acreditava que não havia tortura no País, revê o apoio aos militares e passa a defender a anistia ampla, geral e irrestrita aos presos políticos do período.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Livro Aberto do Instituto Claro.

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