Na última década, diversos filmes e séries passaram a apresentar narrativas que utilizam a fantasia, metáforas visuais e o absurdo para revelar a realidade sob o ponto de vista de pessoas negras. Essa tendência passou a ser chamada de afro-surrealismo.

“São produções que tratam da subjetividade das pessoas negras vivendo em uma sociedade racista e, para demonstrar isso, usam elementos simbólicos e do fantástico. O afro-surrealismo tem a ver com as sensações que essas experiências provocam no corpo e no ambiente exterior. Por isso, está relacionado à experiência racial de ser no mundo e como ela afeta pessoas negras”, explica a diretora e roteirista Ana Júlia Travia.

É o caso da minissérie Sou de Virgem (2023), de Boots Riley, que acompanha um menino negro gigante cuja mãe o impede de sair de casa. “A produção traz uma reflexão sobre como uma mãe negra cuida e protege um filho em uma cidade racista”, comenta Travia.

Outro exemplo é o filme Desculpe Incomodar (2018), também de Riley, sobre a rotina de um operador de telemarketing. “No ato final (contém spoiler), o personagem se transforma em um cavalo. Ou seja, se você aceita a exploração, é tratado como um animal”, associa Travia.

Já em Corra! (2017), o diretor Jordan Peele utiliza elementos do afro-surrealismo para construir um filme de terror.  Nele, o jovem fotógrafo negro vai conhecer os pais da noiva branca e descobre que eles transferem suas mentes para corpos de pessoas negras. “É como uma alegoria sobre como é ser negro em uma sociedade pensada para pessoas brancas”, explica o doutorando em comunicação e líder do grupo “Afro-surrealismo e as Representações na Inteligência Artificial”, do Senac-SP, Marcos Junior.

Forma de sensibilização

“Em linhas gerais, o afro-surrealismo parte da experiência de ser negro em sociedade e a devolve à branquitude não apenas de forma acusatória, mas como uma vivência estética, subjetiva, que revela um mundo invisível”, analisa Junior.

“Essa subjetividade é essencial quando a denúncia já não é suficiente para sensibilizar. Por exemplo, quando há uma chacina com mais de cem corpos negros e isso não causa indignação”, acrescenta.

“Ser negro no mundo é viver uma identidade que foi historicamente determinada pelos brancos, dentro de um processo de colonização e escravização. Por isso, há uma experiência de cisão: o sujeito negro se vê dividido entre o modo como é percebido pelo olhar branco e o modo como se reconhece. Essa dualidade marca profundamente a vivência de ser negro, algo que os filmes afro-surrealistas conseguem demonstrar bem”, aponta Travia.

Não é um movimento

Marcos Junior explica que o termo afro-surrealismo surgiu em 1974, quando o poeta Amiri Baraka (1934-2014) descreveu a obra do escritor norte-americano Henry Dumas (1934-1968) como “expressionismo afro-surrealista”. Em 2009, D. Scot Miller resgatou a expressão ao publicar o seu “Manifesto afro-surrealista”.

“Nele, Miller propõe nomear o mundo invisível e revelar o que está oculto sob a ótica da negritude”, afirma Junior.

No entanto, o afro-surrealismo no cinema não pode ser considerado um movimento propriamente dito, como explica o mestre em comunicação e diretor de filmes afro-surrealistas Yuri Costa.

“Ele não é um movimento, uma escola ou um gênero, porque não tem uma organização formal ou uma filiação rígida — da mesma forma que o surrealismo de André Breton (1896-1966) também não tinha. Entendo o afro-surrealismo como uma estética aberta que permite a contradição”, observa.

Junior explica que, para ser afro-surrealista, um filme tem que revelar o invisível e estar entre o mundo real e o dos sonhos. “Porém, há filmes de outros gêneros que usam elementos do afro-surrealismo, caso do terror social, por exemplo”, explica.

“O afro-surrealismo ajuda a desprender do realismo ao qual nossas artes e imaginação foram confinadas. Permite fantasiar outros mundos e projetar outros futuros possíveis para além da realidade que nos foi imposta”, aponta Costa.

No Brasil, Junior vê o afro-surrealismo mais presente em produções cinematográficas independentes e experimentais do que em séries e longas-metragens. “Também aparece em videoclipes, como Sonho, de Nêgo Bala com Elza Soares, e Bluesman, de Baco Exu do Blues”, completa.

A seguir, confira nove produções audiovisuais que ajudam a compreender melhor o afro-surrealismo no audiovisual.

1) Desculpe incomodar (2018)

Dirigido por Boots Riley, conta a história de operador de telemarketing recém-contratado que encontra um recurso inusitado que o faz ascender rapidamente na empresa, despertando o interesse dos seus superiores. “O filme coloca de forma explicita o debate de ser negro no capitalismo e formas de resistir à exploração”, afirma Travia.

2) Random Acts of Flyness (2018)

Série experimental de Terence Nance que mistura humor, fantasia e crítica social para explorar as vivências negras nos Estados Unidos, abordando temas como racismo, gênero e identidade por meio de esquetes, animações e performances poéticas. “O diretor vai brincar com formatos da televisão, como programas de auditório, trazendo fantasia em situações que vão desde números musicais a entrevistas e esquetes de ficção científica, apresentando não somente a experiência de ser negro em sociedade, mas também de ser queer”, apresenta Travia.

“Em uma cena, um personagem começa a voar para fugir de uma abordagem policial violenta. O diretor traz essas imagens absurda como alternativa de respiro em um mundo racista”, compartilha a diretora.

3) Atlanta (2016)

A série de Donald Glover acompanha Earn, que se torna empresário do primo, o rapper Paper Boi, após sair da universidade. Durante a jornada pela indústria musical de Atlanta, eles passam a viver situações inusitadas e fora da realidade.

“Quando você coloca esses personagens que estão à margem para interagir em uma sociedade organizada por um patriarcado que é branco e cisgênero, há situações de conflitos e tensões surrealistas, que revelam mais do que se pode perceber à primeira vista”, adianta Travia.

4) Sou de virgem (2023)

A série de Boots Riley acompanha a jornada de um adolescente negro de quatro metros de altura cujo principal refúgio é o universo de histórias em quadrinhos.  “Ela vai trazer a questão dos pais superprotetores com filhos negros em um lugar de exagero”, lembra Travia.

5) Corra! (2017)

Filme do diretor Jordan Peele que usa elementos do afro-surrealismo para construir um terror social. Ele narra a história de Chris, jovem negro que está prestes a conhecer a família de sua namorada branca. Durante a visita, Chris percebe que a família esconde algo perturbador. “É um terror social porque usa uma questão social para construir a atmosfera de horror. Apresenta uma sensação comum no racismo que se manifesta nas pequenas relações, que é a pessoa negra estar fazendo algo comum – como visitar os pais da namorada – e ser repentinamente capturada por uma interação racista, que a lembra da sua raça e etnia e do lugar onde tentam colocá-la”, contextualiza Travia.

6) Egum (2020)

Nesse curta-metragem de terror de Yuri Costa, um jornalista renomado retorna à casa da família para cuidar da mãe, que sofre de uma doença desconhecida, após anos vivendo no exterior por causa do assassinato do irmão.

7) Experimentando o vermelho em dilúvio (2016)

Curta-metragem de Musa Michelle Mattiuzzi que acompanha a performance da artista até a estatua de Zumbi dos Palmares, no centro do Rio de Janeiro.

8) Não! Não olhe! (2022)

Nesse outro terror social de Jordan Peele, os moradores de uma remota ravina no deserto da Califórnia se deparam com um fenômeno estranho e aterrorizante. “Historicamente, os personagens negros eram os primeiros a morrer nos filmes de terror. Porém, justamente por eles terem uma vida difícil construída pela experiência do racismo imposto, têm melhores condições de lidar com ‘monstros’, algo que Jordan Peele tenta resgatar”, aponta Travia.

9) Pecadores (2025)

Filme de Ryan Cogler que aborda o retorno de dois irmãos gêmeos à sua cidade natal em busca de um recomeço. “É um filme de terror (contém spoiler) no qual os vampiros podem ser comparados à branquitude”, aponta Travia. “É um filme de horror clássico, mas cuja abordagem para os personagens fantásticos passa por elementos do afro-surrealismo”, diferencia Junior.

Crédito da imagem: iantfoto – Getty Images

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