O presente relato conta a história verídica que se passou comigo quando eu lecionava numa escola pública,no meu estágio;confiei na força do ECA e hoje continuo lecionando,numa situação social um pouco diferente, em outra escola, porém ainda comunitária. Contudo, certas vezes, ainda me deparo com casos de abusos, para isso, não hesito: sei da importância de conhecer a legislação e saber aplicá-la no dia a dia docente. Por isso, sigo estudando e, mesmo no doutorado, ainda tenho dúvidas, porém, sei que a educação é um processo ético e estético, logo, sob o ponto de vista da alteridade, numa proposta dialógica, nossos direitos e deveres não podem ficar de fora. Assim, quando necessário, puxo o Estatuto da Criança e do Adolescente do bolso (livro versão pocket), erguendo e apontando-o, como se fosse um cartão vermelho na mão de um juiz em final de Copa do Mundo! Essa lição não foi apenas profssional, um simples labor docente do estágio: foi uma práksis para minha vida toda, enquanto pessoa humana, por isso, queria poder dividir essa história com outros educadores, por esse Brasil e pelo mundo afora!
 

A 2ªsérie na qual fiz estágio era um encanto! Crianças simples que ajudavam a carregar os livros até minha casa, a duas quadras.Todas eram especiais,mas havia um menino,de oito anos, baixinho, desnutrido, amarelinho e de roupas rasgadas,que mexeu comigo. Sabia o motivo o trazia à escola: a fome. Já havia estudado o ECA no magistério. Sabia que me depararia com casos em que crianças são maltratadas,abnegadas de seus direitos.

Cheguei à escola e lá estava o meu aluno, num dia tipicamente gaúcho, em que acordamos cedo, só para ficar comendo pinhão e tomando chimarrão à beira do fogão à lenha. Que milagre! Nunca ia quando chovia, pois tinha poucas roupas e apenas um tênis velho, rasgado, que a família sorteava entre os cinco irmãos, fazendo com que cada um fosse num dia da semana, para garantir a comida. "Estudar pra quê? Importante é ter o que comer, voltar para casa de estômago cheio!", diziam.

Aproximei-me e perguntei: "Veio à aula hoje, Samuel? Não está com frio, só de chinelos?" De cabeça baixa, mal me olhou. Respondeu rapidamente, desviando: — É, meu irmão também veio, tá com meu tênis, "sora". Quando virou seu rosto, vi o olho inchado, roxo e não me contive: — O que houve? Silêncio. — Nada, não, sora, eu caí no banheiro. Eu sabia que a humilde casa, que mal abrigava todos irmãos em um único cômodo, não tinha banheiro grande a ponto de se cair um tombo.

Respeitei seu silêncio e fomos para a sala de aula. Lá, o inevitável. Bateram na porta: — Vim buscá meu filho. Ele vai voltá pra casa. — Não vô! Quero ficá. — Tá frio, vamo embora, eu tô mandando. Apavorada com a mãe de olho roxo, gritando com o filho na porta, deduzi que ela não podia ter caído no banheiro também. Na tentativa de me tranquilizar, os colegas falaram: —Xi! Acho que eles vão fugir de novo do pai dele, que é bebum, chega em casa e bate em todo mundo! Imediatamente, procurei a coordenação pedagógica, que me disse ser comum essa atitude em outras famílias lá. No outro dia de manhã, inconformada, fui até a casa de Samuel e, para minha surpresa, encontro a irmã mais velha, que não me diz para onde o levaram.

Perguntei pelo pai, mas ela desconversou. Escutei barulhos na casa e, em tom de advertência, mencionei trechos do ECA,dizendo que os direitos de Samuel estavam sendo desrespeitados e que acionaríamos as autoridades caso voltasse à escola com vestígios de agressão. Dias depois, a mãe me encontrou e agradeceu, contou que o pai se envergonhou, ficou com medo e procurou ajuda num grupo de apoio. Sem o ECA, não teria subsídios/coragem de fazer o que fiz; continuo lecionando, com esperança e confiança na lei!

0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments

Receba NossasNovidades

Receba NossasNovidades

Assine gratuitamente a nossa newsletter e receba todas as novidades sobre os projetos e ações do Instituto Claro.