“Com licença, posso entrar?”. Com uma abordagem educada, os palhaços do Doutores da Alegria sempre fazem a pergunta antes de entrar em um quarto de hospital. A ideia é não ser invasivo. Reconhecida em todo o país por sua atuação inovadora, a ONG (Organização Não Governamental) organiza visitas periódicas dos palhaços besteirologistas, como se autodenominam, às crianças hospitalizadas de São Paulo (SP), Belo Horizonte (MG) e Recife (PE). O objetivo chave é o de promover a experiência da alegria na adversidade.

Em setembro, o Doutores completou 21 anos. A fundação no Brasil aconteceu em 1991 por iniciativa do ex-professor de inglês e ator Wellington Nogueira, que assumiu o papel do palhaço Dr. Zinho e hoje é o coordenador geral da ONG. Até 2011, o Doutores já visitou mais de 900 mil crianças e adolescentes hospitalizados. Além disso, sua prática deu origem a cerca de 630 grupos que realizam um trabalho similar em todo país.

Em homenagem ao Dia do Palhaço, comemorado nesta semana, em 10 de dezembro, o NET Educação traz uma entrevista exclusiva com Nogueira. Ele ressalta a atuação do Doutores da Alegria como prática educativa alternativa, além de contar o que aprende e o que ensina por meio da experiência com as crianças. “Estamos desvendando esse conceito de cada quarto de hospital ser uma sala de aula”, diz. Acompanhe abaixo.

Dr. Zinho aprendeu com as crianças que enquanto a
vida existe, tudo é possível (Foto: Cecília Laszkiewicz)

NET Educação – O palhaço Dr. Zinho tem 24 anos. O que você aprendeu com ele nesse período?

Wellington Nogueira – O valor da vida e que enquanto a vida existe, tudo é possível: a experiência da alegria, a cura. Não estou falando de uma cura física, mas a cura das suas feridas internas, que traz a paz de espírito. Aprendi isso com as crianças. Também, como é bom você juntar trabalho com propósito de vida. Ter algo que é difícil, intenso, mas que é tão gostoso a ponto de não parecer trabalho. Quanto mais fui dizendo sim para o Doutores, mais coisas incríveis foram acontecendo para mim. Encontrar a mulher que amo, constituir uma família, percebi como é lindo se relacionar. Mas para isso é preciso correr riscos. O palhaço ensina: tropeça na casca de banana, cai, se esparrama, mas levanta com toda dignidade, se ajeita e continua andando. Esse é o movimento da vida. O aprendizado não para.

NET Educação – O Doutores da Alegria, apesar de ser formado por palhaços, é algo sério e profissional. Como vocês pensam na atuação com as crianças?

Nogueira – Comecei esse trabalho em Nova York [EUA]. Quando cheguei aqui em 1991, tinha certeza que se não me preocupasse em ir mais fundo e deixar uma base sólida, o trabalho seria só um grupo fadado a acabar. Para isso, começamos a documentar e tivemos a sorte de encontrar a psicóloga Morgana Masetti. Ela foi para o hospital e viu cenas que não víamos. A gente era um bando de bobo alegre que estava só preocupado em fazer um bom trabalho, enquanto ela sistematizou resultados: melhoria da relação da criança com o profissional de saúde, com pais, com a doença, o impacto gerado no hospital.

Se ela não tivesse feito isso, todo esse conhecimento teria ficado no chão do hospital. Percebemos que quanto mais nos aprofundávamos, mais conhecimento vinha, e que isso podia ser organizado e disseminado, e tudo o que estávamos passando para as pessoas é sobre o encontro entre criança e palhaço no hospital.

NET Educação – E a metodologia adotada?

Nogueira – Todo o treinamento que criamos foi 100% inspirado na experiência estadunidense, mas adaptamos esse conhecimento para o Brasil. Porque Nova York já tinha muito claro um mapeamento do que se pode ou não fazer num hospital. As precauções com higiene, o método de abordagem com a criança. Nosso cuidado sempre foi para não fazer o artista virar um especialista que entra no quarto e detecta: tenho que fazer isso, e depois aquilo… Não. Mas um cara que fica cada vez mais aberto para o que vai acontecer.

Quando olha o outro de igual para igual e se disponibiliza para o outro, você corre o risco de trazer à tona o que o outro tem de melhor e consequentemente o outro vai trazer à tona o que você tem de melhor. A arte tem um papel incrível de ajudar a elaborar sentimentos e emoções e no momento que estamos doentes, tem muita coisa para ser elaborada.

NET Educação – Acha que o Doutores pode ser considerado uma escola itinerante?

Nogueira – Sim, sim. Com dez anos de atuação, olhamos o elenco e vimos que tínhamos grandes palhaços e a Morgana falava “não podemos não ser uma escola com tanta formação, com tanta coisa”. Uma vez um professor da Universidade de Barcelona disse que formamos seres humanos.

Lá dentro do Doutores, inclusive, estamos desvendando esse conceito de cada quarto de hospital ser uma sala de aula. O grande mestre da gente é a criança, porque o jeito como eles passam pelo sofrimento e como dizem sim para o jogo ao invés de ficar tendo dó deles mesmos é incrível. Você não consegue viver a vida do mesmo jeito depois de ver isso.

NET Educação – Nesse sentido, o que poderia citar que emocionou no contato com as crianças?

Nogueira – Me lembro de um menino, em Nova York, que tinha sete anos e estava com câncer. Os médicos planejavam tirar um osso ruim e botar uma prótese, mas a perna dele teve que ser amputada. Quando chegamos no quarto, ele estava muito bravo. Na segunda vez, quando voltamos, ele disse “eu estava muito bravo naquele dia que vocês vieram, porque eu tinha acabado de descobrir. Achei que ia ficar com uma perna só a vida inteira, mas meu médico explicou que vou ter uma prótese e poderei andar. Ainda bem. Imagina se eu tivesse perdido a cabeça, como eu ia ficar horrível com uma cabeça de plástico”. Se isso não é o máximo, o que é?

NET Educação – O que acha que as crianças aprendem com o Doutores da Alegria?

Nogueira – Acho que no hospital, onde tudo está voltado para o doente que precisa ser curado, você perde o controle sobre seu corpo, e acabamos provocando na criança a capacidade de voltar a ter controle sobre sua vida, de ela ser criança 100%, apesar da doença. O hospital pode ser assustador e com o palhaço, elas pensam “ah, tudo bem, isso está acontecendo, mas posso continuar a brincar e a ser eu mesmo”.

NET Educação – O Doutores aqui no Brasil, como você já disse, foi inspirado no Clown Care Unit, intervenção dos palhaços nos Estados Unidos. Por que palhaços no hospital?

Nogueira – Esse ano começamos a dar aula na Faculdade de Medicina da USP e da Santa Marcelina. Isto está sendo feito em outras universidades também para poderem se vestir de palhaços e visitarem as crianças. Eles querem aprender a se relacionar. O palhaço primeiro olha o outro, não julga, não torna o outro desconfortável. Então ele acolhe, se disponibiliza, é um cara que acaba usando todo o talento para servir aquela criança, porque não tem nada pior para um palhaço do que não ter com quem brincar.

Hoje, temos palhaços na escola, na Itália. Na França, são palhaços na empresa, que funcionam como psicanalistas. Estamos vendo o palhaço voltando para esse século em uma relação de proximidade com as pessoas e justamente em locais inusitados. Ele não abandonou o circo, o circo é que ficou mais amplo.

NET Educação – Você acredita que conseguem interferir e modificar a realidade de uma comunidade?

Nogueira – Acredito que sim. Mas não entramos no hospital pensando “bom, hoje vou transformar” como o médico que tem esse objetivo: “hoje vou tratar dos meus pacientes”. Entramos e vamos fazer o que sabemos de melhor e se aquilo for bem feito, vai causar um impacto. E não nos preocupamos tanto com o tamanho desse impacto, tanto em acertar o alvo, porque é até legal errar e pegar às vezes em algo muito maior. O exemplo que tenho disso é que entramos no hospital para trabalhar com crianças, e consequentemente pais e profissionais de saúde, e começamos a ouvir deles que “isso humaniza o hospital, humaniza as relações”. De repente surgiu o tema humanização hospitalar, que hoje é política pública. É um movimento que saiu da área da saúde, mas me sinto testemunha do nascimento disso.

Doutores da Alegria em ação (Foto: Juan Esteves)

NET Educação – O que era mais fácil e o que era mais difícil quando vestia o Dr. Zinho?

Nogueira – Chegar nas pessoas é o mais fácil, porque o palhaço é um cara que é muito radical e provoca uma reação que é imediata: ou as pessoas amam ou odeiam, não tem tanto morno. Já o que é mais difícil é ser simples. Onde abandonamos os monólogos interiores e vamos para a simplicidade que a criança tem de resolver as coisas. Ser simples e habitar o presente. Porque a simplicidade muitas vezes parece que você não está fazendo nada, e não confiamos nisso. Então, você quer fazer mais e arruína tudo. Ser simples, a troca é simples.

NET Educação – Uma ideia simples muda o mundo?

Nogueira – Sim. Totalmente. Por isso é tão difícil ser simples. Tem um filme chamado “Quem se importa?” e quem se importa são justamente empreendedores sociais pelo mundo que estão fazendo revolução, nessa obra. Tem um monge belga que é budista e resolve ir para a África e cria um método para que as pessoas não morram e não sejam mais mutiladas com as minas terrestres. Fez algo simples: o rato é mais leve que o ser humano e tem um bom olfato, então ele os ensinou a farejarem minas e as pessoas podem ir lá e remover. Quanto mais simples a ideia melhor. Se não, é insustentável. Só temos que confiar.

Para saber mais do Doutores da Alegria, acesse o TV Doutor

https://youtu.be/sOq9JKsTUnM

 

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