“Os Ratos”, de Dyonélio Machado, entra para a lista de livros para o vestibular da Fuvest 2025. A obra é dividida em 28 capítulos curtos e tem como protagonista um homem que perambula pelas ruas de uma então provinciana Porto Alegre (RS), em busca de garantir alimento para o filho.
“Naziazeno Barbosa é um pobre diabo. É um personagem que está na franja da miséria, beirando a miséria, tentando justamente lidar com a dimensão muito básica da nossa existência, que é a da alimentação da família. Então a gente vê aqui o drama de um pequeno burguês, digamos assim, uma odisseia em modo menor. A viagem não é longa, o tempo transcorrido não é longo, mas as aflições vivenciadas por Naziazeno fazem dele um perseverante, embora nunca [seja] uma pessoa que tenha atitudes admiráveis e nem grandes valores morais a serem apreciados pelo leitor”, descreve o professor de literatura do curso Anglo Vestibulares Paulo Oliveira.
O romance escrito por Dyonélio Machado foi publicado em 1935 e é considerado o mais importante do autor. “O contexto literário era da chamada segunda geração modernista, e os escritores nesse momento vão se aproximar de temáticas mais sociais, portanto que vão olhar para a sociedade brasileira de um ponto de vista muito crítico, querendo expor certas mazelas de nossa convivência social”, analisa o professor.
Em “Os ratos”, o funcionário público Naziazeno Barbosa recebe um ultimato do entregador de leite, que exige o pagamento da dívida em 24 horas sob ameaça de não fornecer mais o alimento ao protagonista. “É uma forma, digamos assim, de demonstrar como no intervalo muito curto de tempo muita coisa acontece, seja no plano exterior, das nossas percepções sensoriais, seja no plano interior dos nossos pensamentos e reminiscências”, atesta Oliveira.
No áudio, o docente aponta possíveis questões que podem ser foco do vestibular da Fuvest. “Há um entrelaçamento de vozes, a voz do narrador em terceira pessoa, a voz dos pensamentos de Naziazeno e mesmo a voz dele apresentada, digamos, sonoramente por meio do discurso direto. Esse tipo de entrelaçamento de vozes, que se manifesta por meio de um recurso técnico chamado discurso indireto livre, é sempre um bom assunto para a Fuvest explorar no vestibular”, argumenta.
Por que “Os ratos”?
O professor explica que o nome do romance também chama atenção por ter mais de uma interpretação. “Sob a perspectiva social que o romance assume lá nos anos [19] 30, o nome “Os ratos” pode se referir mesmo à condição de Naziazeno Barbosa tentando conseguir esse dinheiro andando pela cidade, relacionando-se com pessoas, digamos assim, de atividades meio duvidosas, que ficam na franja da moralidade. Lidam com agiotas e outras coisas assim. Por outro lado, o título “Os ratos” refere-se também a um devaneio que o personagem Naziazeno vai ter em sua noite depois de chegar em casa”, analisa Oliveira.
Crédito da imagem: congerdesign – Pixabay
Música: Introdução de “O Futuro que me alcance”, de Reynaldo Bessa, fica de fundo
Paulo Oliveira:
Naziazeno Barbosa é um pobre diabo. É um personagem que está na franja da miséria, beirando a miséria, tentando justamente lidar com a dimensão muito básica da nossa existência, que é a da alimentação da família. Então a gente vê aqui o drama de um pequeno burguês, digamos assim, uma odisseia em modo menor. A viagem não é longa, o tempo transcorrido não é longo, mas as aflições vivenciadas por Naziazeno fazem dele, digamos assim, um perseverante, embora nunca uma pessoa que tenha atitudes admiráveis e nem grandes valores morais a serem apreciados pelo leitor.
Eu sou Paulo Oliveira, professor de literatura do curso Anglo Vestibulares e do colégio Anglo São Paulo. Sou também autor de material didático de literatura.
Vinheta: Livro Aberto – Obras e autores que fazem história
Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo
Marcelo Abud:
“Os ratos”, de Dyonélio Machado, narra a história de um personagem que perambula pelas ruas da então provinciana Porto Alegre. Pelo caminho que faz de bonde ou a pé, somos transportados a um cenário de vulnerabilidade social.
Paulo Oliveira:
Dyonélio Machado escreveu o livro na década de 30, em plenos anos Vargas, e o publicou no ano de 1935. O contexto literário era da chamada segunda geração modernista, deixando de lado aquele experimentalismo linguístico, aquela ideia iconoclasta de derrubar uma forma de expressão preciosista.
E os escritores nesse momento vão se aproximar de temáticas mais sociais, portanto que vão olhar para a sociedade brasileira de um ponto de vista muito crítico, querendo expor certas mazelas de nossa convivência social.
Marcelo Abud:
Em “Os ratos”, Naziazeno Barbosa tenta conseguir dinheiro para pagar o leiteiro.
Paulo Oliveira:
O protagonista da história, chamado Naziazeno Barbosa, vivencia o dilema de ter que conseguir saudar uma dívida de 53 mil-réis com o leiteiro. O leiteiro lhe dera um ultimato, se não fosse pago dentro de 24 horas não forneceria mais o leite, o que era essencial para a sobrevivência do filho de Naziazeno, que tinha de três para quatro anos de idade. Então, esse homem, que é um pequeno funcionário público, sai pelas ruas da cidade – o romance é ambientado em Porto Alegre –, tentando cavar esse dinheiro, a expressão que ele usa querendo dizer, assim, arranjar o dinheiro de alguma forma.
Marcelo Abud:
O livro é dividido em 28 capítulos curtos em que se acompanha praticamente 24 horas na vida do personagem.
Paulo Oliveira:
Nós lemos um romance inteiro, que tem cerca de duzentas e poucas páginas que focam apenas este período. Então é muito curioso, porque o olhar do narrador, que assume a perspectiva de Naziazeno, né, o narrador em terceira pessoa, que conta tudo sobre a perspectiva do personagem, é um olhar muito atento pra pequenos lances do cotidiano. Trata-se de uma narrativa muito sensorial, que aborda o olhar, os sons, por vezes, o tato das coisas em que Naziazeno toca.
É uma forma, digamos assim, de demonstrar como, no intervalo muito curto de tempo, muita coisa acontece, seja no plano exterior, das nossas percepções sensoriais, seja no plano interior dos nossos pensamentos e reminiscências.
Som de página de livro sendo virada
Marcelo Abud:
“Os ratos” está na lista para a Fuvest 2025. Paulo Oliveira aponta um aspecto que pode ser destacado nesse vestibular.
Paulo Oliveira
É justamente a posição do narrador e a maneira como ele insere-se nos pensamentos do personagem, né, o narrador onisciente é a maneira como ele traz esse mundo interior de Naziazeno Barbosa para o plano da expressão literária. Então, há um entrelaçamento de vozes, a voz do narrador em terceira pessoa, a voz dos pensamentos de Naziazeno e mesmo a voz dele apresentada, digamos, sonoramente por meio do discurso direto.
Esse tipo de entrelaçamento de vozes, que se manifesta por meio de um recurso técnico chamado discurso indireto livre, é sempre um bom assunto para a Fuvest explorar no vestibular.
Marcelo Abud:
Outro ponto que chama a atenção na obra é o fato de ela não ser linear e sofrer diversas interrupções apesar da narrativa ser focada no que acontece em 24 horas.
Paulo Oliveira:
Enquanto se narra um fato vivenciado pelo personagem, logo depois o narrador evoca uma reminiscência, uma lembrança distante, ou mesmo o narrador antecipa eventos, porque o personagem está muito tenso, querendo conseguir o dinheiro para o leite do seu filho, e ele se imagina pagando o leiteiro, por exemplo, sem ainda ter o dinheiro nas mãos.
Som de página de livro sendo virada
Marcelo Abud:
O professor explica que o nome do romance também chama atenção por ter mais de uma interpretação.
Paulo Oliveira:
Sob a perspectiva social que o romance assume lá nos anos 30, o nome “Os ratos” pode se referir mesmo à condição de Naziazeno Barbosa tentando conseguir esse dinheiro andando pela cidade, relacionando-se com pessoas, digamos assim, de atividades meio duvidosas, que ficam na franja da moralidade, sabe? Lidam com agiotas e outras coisas assim. Por outro lado, o título “Os ratos” refere-se também a um devaneio que o personagem Naziazeno vai ter em sua noite depois de chegar em casa.
Marcelo Abud:
Paulo Oliveira lê um dos trechos do livro que fazem menção ao título “Os ratos”.
Paulo Oliveira:
Vamos ler um trechinho do fim do livro, quando Naziazeno Barbosa tem suas alucinações. Ele, que deixara os 53 mil-réis em cima da mesa da cozinha e, deitado em sua cama, começa a imaginar que os ratos estão roubando o seu dinheiro.
Som de página sendo virada
Música de fundo: “Cartoon Pizzicato – Comedy by Kevin MacLeod is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 license
“Estuda bem a ‘questão’: se os ratos roem dinheiro… os papéis picados, miudinhos, picadinhos, uma moinha… uma poeira… Sente um pavor e um frio amargo dentro de si! Aquela nota verde, gordurosa, graxenta, está sendo roída… roída… roída… Esse fato está se passando agora, é contemporâneo dele!… Os ratos estão roendo ali na cozinha… na mesa… são dois… são três… andam daqui para lá… giram… dançam… infatigáveis… afanosos… infatigáveis…Vai levantar… vai dar outra arrumação”.
Som de página sendo virada
Então a gente percebe nesse trecho, como a alucinação o atormenta profundamente. E como ele imagina tudo isso, não é? Por mais que o narrador apresente os sons dos ratos roendo o dinheiro, na verdade tudo não passa de uma imaginação de Naziazeno Barbosa.
Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo
Marcelo Abud:
“Os ratos”, de Dyonélio Machado, é considerada uma das obras mais relevantes da segunda geração do modernismo no Brasil. O livro critica a influência do dinheiro na sociedade ao demonstrar o que se passa com parte da população, que se vê em dívidas e recorre a empréstimos para garantir o essencial à sobrevivência.
Marcelo Abud para o Livro Aberto do Instituto Claro.