Eliane da Silva sentiu o “peso” do preconceito ainda criança, aos sete anos de idade. “Lembro-me de uma cena em que um senhor enchia as mãos de uma colega minha, branca, com balas sortidas e raivosamente se dirigia a mim – já com as mãos abertas e os olhos brilhando – e dizia: você não, negrinha preta não ganha bala”, relembra. Segundo a educadora, o episódio – embora não o único discriminatório vivenciado – foi um “tiro certeiro” para os questionamentos que viriam sobre sua existência e para a busca, incessante, sobre o conhecimento real de suas raízes que se sobressaem nas descendências africanas.
As crises pessoais, segundo Eliane, acabaram por inseri-la cada vez mais nos debates e na ampliação de ideias relacionadas à história da África, dos africanos e dos afrodescendentes, temas que a profissional elucida em entrevista exclusiva ao NET Educação.
NET Educação – Como você avalia a inserção da cultura negra em meio aos ambientes escolares?
A ocorrência é muito positiva para a população negra, especialmente no que diz respeito à autoestima dos estudantes. Ante esta exigência legal, as únicas representações do negro eram a da inferioridade, marcada pela escravidão e favelização. Também é importante para a escola, pois nota-se que os professores foram pegos de surpresa, ou seja, não sabiam como tratar o tema, até então muito distante dos assuntos vistos em sala de aula. Desta forma, a lei favoreceu a política de aperfeiçoamento contínuo dos professores por criar um fato indisfarçável da necessidade de investimento na carreira docente. Professores e alunos ganharam, pois os primeiros tiveram um meio para exigir publicamente melhores treinamentos e condições de trabalhos; os alunos viram o universo artístico-científico e humanístico ser profundamente alargado ao tratar de uma “certa terra exótica, distante e esquecida” – África.
NET Educação – O que tem a dizer sobre a adoção da lei federal 10.639?
Tornar obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-brasileira e africana nas escolas de ensino fundamental e médio, das redes públicas e particulares, é o caminho para nos aproximarmos de fato de nossas raízes. Essa lei já deveria ter sido imposta há muitos anos. Quantas gerações de estudantes já não passaram pelas cadeiras escolares sem saber que no continente africanos haviam reis, rainhas e uma sabedoria invejável? Antes da lei, o afrodescendente ouvia da boca de uma fileira de professores que o negro tinha sido escravo, humilhado, dizimado, mas, e o restante da história? Aquela vinda da África, berço da humanidade? Esqueciam-se do aurífero Império de Gana e de Songai que nos séculos XIV e XV já esbanjavam no uso de técnicas de plantio e irrigação por canais; sem falar na civilização iorubá, Reino do Congo, enfim, há uma imensidão de riquezas que foi suprimida da história e agora o resgate está sendo feito gradualmente. É um avanço. Agora posso dormir um pouco mais tranquila por saber que meus sobrinhos poderão sentir mais orgulho de seu povo, de sua raça/cor e história; as cadeiras do “fundão” da escola não terão mais nelas os nomes dos afrodescendentes que se recuavam, querendo se esconder de um passado “forjado” de submissão.
Vale lembrar que o fundamento da lei é valorizar a diversidade presente na humanidade, especialmente no que diz respeito às relações étnicos/raciais. Isto é, não há como entender a medicina moderna sem falar de um africano chamado Imhotep; as revoluções econômicas recentes podem ser seguramente menos importantes para o desencadeamento da história do que a revolução que ocorreu no continente africano, a chamada de agricultura. Assim, a lei não trata apenas de história ou literatura, mas sim de toda a matriz do conhecimento moderno. Tal patrimônio científico e cultural é, em grande parcela, creditado aos africanos e seus descendentes. E em função delas nós devemos ser reconhecidos. Isto pode ser feito pelo reconhecimento da autoria de procedimentos e objetos mais corriqueiros como: a invenção do semáforo, elevador, preservativo, bateria elétrica ou por grandes obras como a invenção da rede de esgotos, metalurgia e das obras faraônicas. Agora o que era conto dos nossos avós se tornou lei.
NET Educação – Acredita que esse pode ser um caminho para minimizar a questão do preconceito e intolerância?
Acredito que seja um bom começo. De toda forma cabe dizer que o preconceito e a intolerância nascem da desigualdade e disputas materiais entre os homens. Esta, muito costumeiramente, leva à negação da humanidade do outro e autoriza todo tipo de violência. Nesse sentido, o conhecimento é apenas uma ferramenta. O que as pessoas farão com ele não está ao nosso alcance prever, uma vez que pode ser usado tanto para o bem quanto para o mal diante da sociedade e de seu povo. Este preconceito e intolerância são independentes do grau de instrução, classe econômica ou cor/raça.
É importante ressaltar que a prática da justiça é que combate a discriminação. Não faz muito sentido uma professora dizer aos alunos que todos somos iguais perante a lei enquanto as crianças veem, em quase todas as paisagens diárias, a inferioridade dos negros, seja econômica, de ocupação no posto de trabalho ou de acúmulo cultural. Penso que o melhor caminho para que os problemas acima indicados sejam minimizados é proporcionar uma igualdade de direitos para os afrodescendentes, de maneira que ele se veja na mídia, nos bancos, nas grandes empresas, na direção e em meio à classe de professores das universidades. Enfim, o afrodescendente precisa ter espaço para desenvolver e agregar valores no meio em que vive.
NET Educação – E como está o ensino da cultura afro-brasileira e africana nas escolas?
É simplesmente fantástico. A todo momento eu recebo na minha caixa de e-mail um novo relato de experiência. Sempre que há eventos/aulas relacionados aos temas, a escola se mobiliza e a expectativa é sem comparativos. Muitos desses acontecimentos que envolvem a escola e algumas vezes a comunidade dão voz a personagens até então anônimos que viviam pelo entorno. Agora, o capoeirista é convidado para falar sobre os “segredos da arte”; alguns educadores aproveitam a Semana de Consciência negra e homenageiam Cruz e Souza, Carolina Maria de Jesus, João Cândido, Zumbi, Dandara e muitos outros personagens de um Brasil visto por olhos críticos e curiosos. Os poucos museus que tratam a temática afro estão recebendo muito mais visitas do que nos últimos anos. Ainda é cedo pra dizer, mas estudar a cultura afro-brasileira e africana nas escolas trarão benefícios inimagináveis. Os estudantes precisam conhecer a fundo a história dos negros e aprender a valorizá-la e respeitá-la, assim como todos aprenderam sobre a história e supremacia da Europa.
De toda forma, talvez pelo fato dos professores ainda não obterem um material sólido e uma preparação mais atenciosa para trabalhar com o tema da cultura afro-brasileira, eles acabam dando mais liberdade para os alunos, auxiliando assim para o afloramento de manifestações mais criativas e envolventes. O ambiente escolar tem o poder de mudar o padrão de interação entre professores e alunos. Notem que o olhar do aluno é mais frequentemente do protagonista do discurso que circula nas atividades voltadas ao tema. Isto também aumenta o autodidatismo.
NET Educação – Para abordar o tema, o professor precisa de uma formação específica, direcionada à valorização dos alunos negros e também da cultura africana?
Sim, pois não tem como tratar bem de um tema que não se conhece. Infelizmente as universidades e editoras brasileiras acabaram desprezando esta pauta. Isto torna a situação do professor muito complicada perante a discussão do tema em questão. É necessário que o docente tenha formação adequada, seja esta advinda da própria escola ou por meio de materiais e meios sustentáveis que possam favorecer a ampliação do conhecimento sobre a temática. É de suma importância também que haja uma coordenação escolar incentivadora e colaborativa com as iniciativas dos professores.
Entrevistas como esta, que o portal NET educação está realizando, já é uma contribuição para o aparelhamento da escola e, por consequência, dos professores, pois se veem observados e relacionados com a proposta de trabalho que remete à valorização do aluno afrodescendente, que está diante de uma sociedade impregnada por ideias já anteriormente formadas.
NET Educação – E em relação aos alunos, qual a melhor maneira de sensibilizá-los para o tema, fazendo com que agreguem valor à cultura afro?
É curioso: quando alunos e professores começam a trabalhar sobre o tema vão se dando conta de que são muito mais africanos do que poderiam imaginar; obviamente que parte desta identificação é um efeito lúdico, porém muito saudável. Um ambiente de solidariedade e respeito mútuo é o primeiro passo. O professor precisa se munir de informações que por ora estavam engavetadas nas bibliotecas e repassá-las para o ambiente escolar; por exemplo, disponibilizar dados sobre intelectuais, médicos, engenheiros e outros líderes negros é uma maneira de valorizar o afrodescendente. O aluno precisa saber que o negro é um participante ativo da história de nosso país; aquele papel do negro como empregado, escravo, coitado e favelado precisa ser disperso aos poucos e o professor é o personagem principal para assumir este papel de agregação de valores positivos aos afrodescendentes.
NET Educação – Como as famílias podem intervir nesse sentido? Há algum trabalho que possa ser iniciado dentro de casa?
As famílias podem intervir e muito na formação da criança, no despertar de seu entendimento de mundo. É por meio de diálogos e referências oriundas de casa que muitos alunos se desenvolvem psico e socialmente, cabendo à escola apenas complementar o ensino. Como o filho irá respeitar um colega que é esteticamente diferente dele se em casa ouve os pais inferiorizando a empregada, o porteiro ou qualquer outra pessoa em função de sua cor/raça? É preciso, e necessário, que os pais dialoguem com os filhos sobre a pluralidade de pessoas existentes em nosso meio, apontando a necessidade de respeitá-las. Os pais podem, por exemplo, contar algumas histórias africanas para os filhos, apresentar por meio de fotos afrodescendentes que fizeram história, que colaboraram imensamente para a construção e desenvolvimento do país em que vive, enfim, há uma série de informações relevantes que podem ter um processo inicial oriundo do lar ou, ainda, que podem ser transferidas por meio dos principais agentes e referência dos filhos.
NET Educação – Qual a sua posição frente à implantação de políticas de cotas no Brasil?
Plenamente favorável. Não há motivo para o Brasil ser planejado e dirigido por apenas um estoque racial. O Brasil precisa de muitos médicos, engenheiros e doutores negros para se desenvolver ainda mais. Nos grandes eventos de moda, como o São Paulo Fashion Week, por exemplo, faltam modelos negros para que o evento seja, de fato, brasileiro. No comando da polícia militar e nos exércitos faltam afrodescendentes para que nossos oficiais sejam realmente reconhecidos como defensores da nação. As cotas para os negros são uma solução. Quais são as alternativas gerenciáveis? Quais são os prazos para que a justiça aconteça? Por isso tenho o dever moral de defender as cotas para negros. Do contrário estaremos desprezando o princípio da justiça e da igualdade entre os homens.
NET Educação – Quais as principais conquistas da cultura afro-brasileira e africana na educação brasileira? O que já podemos comemorar?
Acredito que a conquista mais importante é a obtenção de uma expansão cultural, seguida pelo enfrentamento das práticas que discriminam as pessoas segundo estereótipos e estigmas perversos. Com a lei 10.639/03 em plena atividade, o horizonte sociocultural dos brasileiros irá se alargar, o que nos permitirá um posicionamento entre as nações com influência mundial.
De imediato, posso inferir que o fato do estudante negro poder entrar na sala de aula com a cabeça erguida, sabendo que não ouvirá apenas a história do malandro Saci-pererê e dos negros escravizados que apanhavam até sangrar, já é um grande motivo de comemoração. Quiçá pudera eu ter aprendido também a história das Geledés em consonância com a Branca de Neve!
Sobre o autor:
Educadora em cultura afro-brasileira, atua como pesquisadora e coordenadora pedagógica do Núcleo de Consciência Negra da USP.