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Paulina Chiziane foi a primeira mulher moçambicana a publicar um romance em seu país. Em ‘Niketche: Uma História de Poligamia’— que está na lista de livros do vestibular da Universidade de Campinas (Unicamp) em 2022 —ela apresenta a condição feminina e social que luta para desconstruir. “É muito importante a gente entender o quanto que essa mulher marca uma transição da literatura moçambicana – inclusive, [a partir dela] se passa a conceder a ideia de que mulheres participam da vida civil e se tornam profissionais de destaque.”, afirma o professor do Anglo Vestibulares Mauricio Soares Filho.

Entrevistado nesta edição do Livro Aberto, no áudio ele destaca como a literatura de Chiziane está ligada ao resgate da cultura local e aborda temas considerados tabus em uma região em que a atividade literária é exercida quase em sua totalidade por homens. Também no podcast, o professor explica o título da obra, que foi lançada no Brasil em 2004: “Niketche é uma dança sensual, que a gente pode entender quase como uma dança do acasalamento. As meninas são preparadas, principalmente no norte do país, pra esse momento da iniciação sexual, inclusive acompanhadas por professoras”.

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Transcrição do Áudio

Música: “O Futuro”, de Reynaldo Bessa, versão instrumental, fica de fundo

Mauricio Soares Filho:
Paulina Chiziane é uma autora moçambicana, negra, a primeira mulher do país que publicou um romance: “Balada de amor ao vento”, no início dos anos 90. É muito importante a gente entender o quanto que essa mulher marca uma transição da literatura moçambicana – inclusive, se passa a conceder a ideia de que mulheres participam da vida civil e se tornam profissionais de destaque, como no caso dela, que ganhou o prêmio José Craveirinha, exatamente com “Niketche”, que é o livro sobre o qual nós vamos falar, que foi publicado em 2002. A gente pode considerar um momento de grande importância na literatura moçambicana e no desenvolvimento da cultura daquele país como um todo.
Meu nome é Mauricio Soares Filho, professor de literatura no Curso Anglo aqui em São Paulo, há aproximadamente 30 anos.

Som de página de livro sendo virada

Vinheta : Livro Aberto – obras e autores que fazem história

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
Moçambique se torna independente de Portugal em 1975 e pouco tempo depois enfrenta uma guerra civil até o ano de 1992. Apesar da maior parte da população ser cristã, há uma presença forte de seguidores do islamismo no país africano. Nesse cenário, o processo de emancipação feminina levou muito tempo para se concretizar e a cultura moçambicana ficou um pouco apagada durante décadas. Paulina Chiziane tem muita importância para o resgate das tradições locais e do papel da mulher em Moçambique. A literatura que faz aborda temas sensíveis em uma região em que a escrita até pouco tempo era exercida praticamente só por homens. O amadurecimento como escritora vem com a publicação de Niketche: uma história de Poligamia.

Mauricio Soares Filho:
Niketche é uma dança sensual, que a gente pode entender quase como uma dança do acasalamento. As meninas são preparadas, principalmente no norte do país, pra esse momento da iniciação sexual, inclusive acompanhadas por professoras, que ensinam truques de sedução, propõem reflexões a respeito do amor, da vida a dois…

Marcelo Abud:
O professor lê um trecho do livro em que Chiziane fala sobre a dança que dá título à obra.

Som de página de livro sendo virada

Áudio do documentário “Inouwa N’niketche”, em que acontece a dança Niketche, fica de fundo

Mauricio Soares Filho:
“Niketche. A dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar: as raparigas aparecem de tangas e missangas. Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras.
Ao primeiro toque do tambor, cada uma sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se viveu e se perdeu. As mulheres desamadas reencontram no espaço o príncipe encantado com quem cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. Nos jovens desperta a urgência de amar, porque o niketche é sensualidade perfeita, rainha de toda a sensualidade. Quando a dança termina, podem ouvir-se entre os assistentes suspiros de quem desperta de um sonho bom”.

Som de página de livro sendo virada

Mauricio Soares Filho:
A Rami, que é a narradora e protagonista da obra, não tem na sua história esse processo de iniciação. Por ser uma mulher do sul, foi preparada para o casamento dentro de uma perspectiva católica e cristã, em que esperava-se o casamento monogâmico (em que a fidelidade estaria incluída), e ela, portanto, faz parte de um outro universo de tradições. E ao entrar em contato com as outras mulheres que ela descobre que o seu marido tem, entra também em contato com essa cultura moçambicana – talvez mais ancestral, inclusive anterior à colonização dos cristãos. E, portanto, com outros costumes. E é aí que ela vai começar a saber de todo esse processo de iniciação e consultar uma dessas professoras.

Walkíria Brit:
“O meu Tony proíbe-me de usar adornos e artifícios. Quer-me pura tal como Deus me pôs no mundo. O que para mim é proibido, à outra é permitido. Essa contradição me ofende”.

Mauricio Soares Filho:
A relação dela com a professora é marcante apenas no sentido de desencadear um processo de emancipação – inclusive da própria Rami – de contenção da sua condição feminina, de experimentação de algumas dessas estratégias de amor e sedução que ela não conhecia. Mas não será isso o que definirá o seu comportamento e a sua atitude, a partir de então. Ela não se tornará, depois do contato com essa professora, exatamente uma mulher sedutora e que colocará em prática todos os truques aprendidos.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
Mauricio Soares Filho ressalta que o livro começa apresentando a realidade sofrida de uma mulher apaixonada pelo marido. No entanto, há muitas viradas na narrativa de Rami. Ele cita uma das ações que muda o rumo da história.

Mauricio Soares Filho:
Que é o fato da Rami armar uma situação, no aniversário de 50 anos do seu marido Tony, em que o comportamento sexual do marido se torna público. Todas as esposas que ele mantém, inclusive sustentando as casas e gerando filhos. E ela exige, então, na frente de toda a família, que Tony se assuma como um polígamo. E uma vez polígamo, ele vai precisar também tomar todas as atitudes esperadas de um homem que tem cinco mulheres: do ponto de vista legal, da garantia de futuro dessas mulheres e dos filhos, das obrigações que o marido tem. Essa situação vai virar completamente.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
“Niketche: uma história de poligamia” está na lista da Unicamp 2022.

Mauricio Soares Filho:
A Unicamp deve explorar essa questão social relacionada à condição feminina e, também, dialogando tanto com as lendas e mitos presentes no universo da Rami, dos personagens de “Niketche”, quanto com essa perspectiva da oralidade. Paulina fala da importância da oralidade na sua obra e do quanto trazer essa oralidade para a literatura é uma das intenções do seu trabalho.

Música: “Espiral de Ilusão” (Criolo), com Ceumar e Josiara
Como você dorme tranquilo?
Me magoou, me destruiu, me desandou
Como você dorme tranquilo?

Mauricio Soares Filho:
Dentro dessas cinco mulheres que são, digamos, as que se tornam oficiais, do Tony, nós temos diferentes etnias, as mulheres são de diferentes regiões de Moçambique e, por isso mesmo, têm comportamentos diferentes, atitudes diferentes. São vistas como ou mais sensuais ou mais voltadas pra criação da família. Isso se reflete nas roupas que usam, nas danças que fazem, nas comidas. Veja o quão rico é esse universo pra ser explorado no vestibular.

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
Três aspectos estão entre os mais importantes no livro de Paulina Chiziane: a questão do gênero, que envolve a condição feminina; a relação com os mitos e lendas da tradição moçambicana; e a presença da oralidade fortemente notada no estilo da escritora.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Livro Aberto, do Instituto Claro.

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