O Conselho Tutelar (CT) é um órgão criado em 1990 para garantir o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), atuando como um dispositivo de defesa e proteção dos direitos. Quando uma situação extrapola a responsabilidade social e os conhecimentos técnicos e pedagógicos da escola, o CT pode ser acionado. Mas qual exatamente deve ser a relação desse órgão com as escolas?

“O Conselho Tutelar é uma instituição não jurídica, da sociedade civil, que trabalha em parceria com a escola e em intermédio com outras instituições e redes de proteção infantojuvenil, como Ministério Público (MP), Varas da Infância e da Juventude nos Tribunais de Justiça (TJ), delegacias de polícia quando há abusos e crimes etc.”, descreve a doutora em ciências humanas e educação e professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Pâmela Suélli da Motta Esteves.

Cada município pode contar com um CT ou mais, dependendo da sua extensão e demandas, e os conselheiros são eleitos democraticamente. A candidatura exige estar em dia com obrigações legais e eleitorais, ter vínculo comprovado com a região de atuação e não exercer cargo político, legislativo ou administrativo em instituições públicas.

“É necessário comprovar atuação como educador de crianças, jovens e da comunidade, prova escrita sobre o tema e exame psicológico. Os conselheiros eleitos frequentam capacitações do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (CMDCA), TJ, MP ou universidades”, destaca a doutoranda em educação escolar e profissão cocente pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) Islaine Natália Demétrio.

A vice-presidente da Comissão de Defesa das Crianças e Adolescentes da Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais (OAB-MG) Alexandra Clara Ferreira Faria lista as situações em que o CT é acionado pela escola: “São os casos de violações de direitos ou situação de risco, como evasão escolar, indício de maus tratos, dependência química, abusos e assédios.”

“O CT aconselha e ajuda a escola e família a lidar com a situação ao acionar outras redes protetivas”, descreve Esteves. Já a família pode acionar o CT quando não consegue vaga em escola ou necessita de educação em ambiente hospitalar. “De outro lado, a escola pode receber do CT crianças e adolescentes por encaminhamento judicial ou com medida protetiva e de garantia de direitos, tais como vagas para alunos com deficiências, transtornos e que demandem de atendimento especializado”, assinala Demétrio.

Leia também: Cartilhas online orientam atuação de conselhos em defesa da criança e do adolescente

Relação tensa

Apesar de terem papéis distintos e objetivos em comum em relação ao bem-estar de crianças e adolescentes, CT e escola podem vivenciar relações de tensão. “Muitas vezes, ele judicializa relações escolares em situações que a escola daria conta pedagogicamente, por exemplo, em questões de indisciplina, conflitos ou bullying”, comenta Esteves.

Esteves acredita que o conselho faz uma abordagem criminalista e punitiva, tratando as crianças como réu e vítima. Para ela, situações que não precisariam chegar ao MP ou ao TJ, chegam. “Esse caráter punitivo faz com que crianças e adolescentes enxerguem o CT não como protetivo, mas como uma instituição que vai separá-la dos pais e que fará mal”, analisa.

Outro problema é o desconhecimento sobre as funções e responsabilidades do CT por parte dos educadores, e vice-versa. “Eles não entendem porque a escola não consegue resolver seus problemas internos e desconhecem que ela está sobrecarregada porque virou uma instituição panaceia, que tem que resolver todos os problemas sociais, do analfabetismo ao racismo e violências de gênero”, exemplifica Esteves.

Em casos complexos e recorrentes de indisciplina com alunos, a própria escola aciona o CT quando suas práticas pedagógicas se esgotam, mesmo não sendo seu campo de atuação – situação identificada por Demétrio em pesquisa.“Muitas solicitam, por exemplo, encaminhamentos destes alunos a especialistas comportamentais como forma de prevenção”, diz.

Segundo ela, quando há disputas de espaços de poderes entre CT e escola, a parceria e as práticas em conjunto ficam comprometidas. “Isso pode significar não cumprimento de deveres e risco à integridade física, moral e psíquica da infância e juventude”, contextualiza Demétrio.

Soma-se a isso o fato de escola e CT trabalharem de forma precarizada “O estado negligencia os direitos da infância ao não oferecer estrutura orçamentária, física e de recursos humanos para que ambos desempenhem suas ações com qualidade”, diz. “Apesar do ECA estipular que cada CT deve atender até 200 mil habitantes, a área de abrangência e demandas em capitais como Belo Horizonte são maiores na prática”, exemplifica Demétrio.

Fundamentalismo religioso

Outra problemática é que os conselhos tutelares tem sido um campo de disputa religiosa. Em 2020, reportagem do El Pais . denunciou que representantes de igrejas neopentecostais dominavam conselhos tutelares de São Paulo e Rio de Janeiro

“Penso que há conservadorismo e tentativa de usar o CT para controle social, principalmente para fazer frente aos avanços nos debates sobre gênero e sexualidade presentes na sociedade civil nos últimos 40 anos”, analisa Esteves. “O problema é que isso infringe o estado laico e a autonomia da escola em discutir questões de gênero, sexualidade e de outras religiosidades, como as de matrizes africanas”, completa.

“Isso pode acarretar que escola e CT tenham práticas e lidem com as crianças segundo crenças e interesses religiosos, desconsiderando a diversidade cultural da nossa sociedade”, ressalta Demétrio.

Entre situações recentes de abusos de conselheiros tutelares em prol de pautas morais na escola, houve dois casos em Minas Gerais. Em 2019, um conselheiro de Juiz de Fora (MG) foi afastado ao tentar criminalizar um debate de identidade de gênero em uma escola e promover injúria racial. Em 2022, em Ribeirão da Neves (MG), uma mãe perdeu a guarda momentânea da filha por levá-la a um culto de matriz africana.“Penso ser difícil que o conselheiro religioso consiga deixar de lado preceitos na hora de tomar decisão da vida de criança e adolescente”, opina Esteves.

Mas caso o conselho adentre uma área que não é de sua competência, como gestão e professores da escola podem agir?“O mais produtivo é tentar dialogar e explicar que tal atitude extrapola o papel do CT de garantir proteção e direitos às crianças e adolescentes. Caso contrário, deve-se acionar o MP”, orienta Esteves “Os conselhos tutelares são veiculados ao CMDCA e, as escolas, à Secretaria de Educação Municipal ou Estadual. Ambos podem ser acionados”, recomenda Faria.

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