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“Clara dos Anjos” é um dos livros mais conhecidos de Lima Barreto. Ele foi escrito no início do século XX e publicado após a morte do autor. A obra conta a história de uma jovem negra do subúrbio para denunciar o racismo na sociedade brasileira.

“Também se destaca bastante a questão do abuso das elites diante da necessidade das pessoas mais pobres, da ignorância muitas vezes que elas têm dos seus direitos, entre outras questões que são comuns inclusive ainda hoje, como o racismo, a misoginia e outras formas de abuso e de discriminação”, afirma o professor de literatura Claudio Caus.

A obra está inserida no contexto do pré-modernismo. É realista e chega a ter um tom próximo de uma crônica jornalística, com linguagem coloquial. “Sem contar, a qualidade literária dele (Lima Barreto) que é ímpar. Embora também bastante incompreendido e até discriminado naquele tempo, por valorizar uma linguagem mais oral, próxima do dia a dia das pessoas, que, inclusive, seria padrão, digamos assim, dos modernistas”, explica Caus.

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Claudio Caus:
O Lima Barreto ele é um escritor extremamente atual, ele se encaixa bastante nesse momento em que a gente fala muito das tais pautas afirmativas. Ele é um autor que já no seu tempo, pela sua ascendência, né, avós por parte de mãe, por parte de pai que eram escravizados, então certamente isso marcou a literatura dele, que denuncia o racismo. Assim como ele também, embora sendo homem, se posicionou favoravelmente pelos direitos das mulheres naquela sociedade e, também, é claro, né, falou dos desmandos e abusos das autoridades, da negligência do governo diante da população mais pobre, mais desassistida.
Sem contar, a qualidade literária dele também, que é ímpar, embora também bastante incompreendido e até discriminado naquele tempo, por valorizar uma linguagem mais oral, próxima do dia a dia das pessoas, que, inclusive, seria padrão, digamos assim, dos modernistas.
Valeria aí um interesse mais cuidadoso dos jovens, né, das gerações mais atuais.
Sou Claudio Caus, sou professor de literatura e vim aqui falar sobre o livro ‘Clara dos Anjos’, de Lima Barreto.

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Marcelo Abud:
‘Clara dos Anjos’ é um dos livros mais conhecidos de Lima Barreto. Escrito no início do século XX, a obra conta a história de uma jovem negra e suburbana. Como em outros títulos do escritor, o contexto em que Lima viveu o levou a denunciar o racismo na sociedade brasileira.

Claudio Caus:
Ele vive um momento assim imediatamente posterior ao fim, pelo menos oficial, da escravidão com a Lei Áurea e, também, o início da república. Então ele nasceu nesse contexto, nasceu em 1881 e ele morre em 1922, justamente no ano da Semana da Arte Moderna, né, que comemorava o centenário da nossa independência e inaugurava um novo momento de reflexões literárias a respeito de como a nossa cultura ainda era bastante colonizada e de como houve uma tentativa de romper-se com isso.
Antes que os modernistas dessem esse primeiro grande grito, ele já experimentava nas suas obras, tanto tematicamente como estilisticamente, outras alternativas.

Marcelo Abud:
A obra de Lima Barreto tem como uma de suas marcas revelar a realidade dos subúrbios cariocas.

Claudio Caus:
Fala bastante, inclusive nos seus livros, que enquanto era mais sofisticado o centro, a periferia – o subúrbio como ele chama – era bem mais desassistido. Esse é o contexto geográfico, o contexto espacial em que ele vive, né, de um momento assim, de um crescimento cada vez mais exacerbado dos centros urbanos e as populações mais marginalizadas não usufruindo muito disso, muito pelo contrário.
Também se destaca bastante, no livro dele, a questão do abuso das elites diante da necessidade das pessoas mais pobres, da ignorância muitas vezes que elas têm dos seus direitos, entre outras questões que são comuns inclusive ainda hoje, como o racismo, a misoginia e outras formas de abuso, outras formas de discriminação.

Música: “Subúrbio” (Chico Buarque)
Lá não tem brisa
Não tem verde-azuis
Não tem frescura nem atrevimento
Lá não figura no mapa
No avesso da montanha, é labirinto
É contra-senha, é cara a tapa

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
Claudio Caus contextualiza o ambiente em que vive a protagonista do livro.

Claudio Caus:
Clara dos Anjos, de 17 anos, o pai tinha uma pele um pouco mais clara, mas tinha o cabelo entre aspas ruim, na descrição do autor, que é inclusive alvo de preconceitos ainda hoje e a mãe, que embora tivesse o cabelo liso, tinha a pele mais escura. Então, o Lima já vai mostrando um pouco da complexidade de se descrever as características das pessoas por conta dessa intensa mestiçagem pelo que o povo brasileiro passou.
Então a Clara ironicamente tem esse nome de Clara, que remete à cor branca, na verdade, quando – na verdade – ela era entre aspas mulata, que é um termo que hoje tem sido bastante discutido por conta da sua origem bastante preconceituosa, racista.
E dos Anjos, né, que remete a alguém que também ora pode ser visto de uma forma branca, aloirada, como os anjos costumam ser retratados pela tradição católica europeia, mas também como aquele ser que protege as pessoas mais desvalidas, que ironicamente também não foi o caso da Clara, né, que não contou com nenhuma proteção divina, não contou aí com nenhuma intervenção para o desastre que se sucederia na vida dela depois.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
Na trama, Clara se ilude com Cassi Jones, um típico galanteador. Por meio dos acontecimentos entre os eles e suas respectivas famílias, Lima Barreto apresenta sonhos e preconceitos presentes nos subúrbios cariocas. Para Caus, a leitura é excelente para o ambiente escolar.

Claudio Caus:
Com relação ao uso do livro em sala de aula é interessante que o Lima Barreto propõe que a gente repense a maneira de educar. Inclusive o último capítulo do livro chama-se ‘Educadores’, que é como se a própria vida ou a sociedade, enfim, ou questões como essa acabam nos educando, né, de uma maneira frequentemente traumática, que poderia ser evitada se tivéssemos em estado mais sólido, no sentido de oferecer uma melhor estrutura educacional e consequentemente também tivéssemos uma estrutura familiar mais sólida para que moças como a Clara dos Anjos não fossem criadas praticamente, entre aspas, em cativeiro, como era pelos pais.
Então quer dizer, em vez de educar a filha para que tivesse autonomia, para que tivesse senso crítico, para que identificasse inclusive malfeitores, homens de mau-caráter, portanto se tornassem menos vítima, se tornassem mais prevenidas a respeito de pessoas dessa natureza, possivelmente este tipo de desgraça não teria acontecido com ela e com tantas outras moças, né?

Música: “Mais uma boca” (Fátima Guedes)
Vai correndo ver como ela está feia,
vai ver como está cansada
e teve o seu filho sozinha sem chorar, porque
a dor maior o futuro é quem vai dar.

Claudio Caus:
E o mesmo também vale para as classes mais abastadas, né? Porque não adianta só cobrar educação, como muita gente fala, como a própria mãe do Cassi Jones fala ‘ah, meu filho não obrigou essas moças a fazerem nada’, ‘ele ameaçou? Ele praticou alguma violência? Ele colocou alguma arma na cabeça pra essas moças cederem a ele? Não! Então a culpa é delas’.
Então também aí é uma chamada de atenção do Lima Barreto, para que a própria classe mais elitizada também tivesse uma educação melhor e criasse melhor os seus filhos para respeitarem inclusive as mulheres, coisa que na sociedade não acontece, né? Pelo contrário, as mães, muitas delas, inclusive essa extremamente protetora com relação ao filho, passava a mão na cabeça dele pra tudo, então era um menino extremamente mimado, coisa que a gente ainda hoje vê acontecendo muito, tendo aí portanto uma visão de mundo, um senso moral e até mesmo ético bastante deturpado, né?

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
O professor lê um trecho do livro. Nele, Lima Barreto se posiciona pela importância que a educação tem para se evitar destinos como o de ‘Clara dos Anjos’.

Claudio Caus:
‘A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente… O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres… Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça… Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam.’

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
Lima Barreto morreu há pouco mais de 100 anos. A obra que deixou, incluindo ‘Clara dos Anjos’, é importante – ainda hoje – para se entender as desigualdades sociais e o preconceito racial vividos no Brasil.
Marcelo Abud para o Livro Aberto, do Instituto Claro.

 

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