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Cornélio Pires (1884/1958) nasceu na cidade de Tietê, interior de São Paulo. Antes de ser reconhecido como um dos principais escritores e pesquisadores na valorização da cultura caipira, chegou a travar importante disputa com Monteiro Lobato para desmistificar a imagem atribuída à cultura caipira. Sua obra pode ser apresentada aos alunos para quebrar preconceitos.

“Essa resistência do homem livre, do caboclo, em ser um escravo ou um mero funcionário sem direitos, foi interpretada como uma indolência, como uma preguiça – deformação cultural. Então, o Monteiro Lobato (em artigo de 1918) vai acusar o caboclo, que é esse homem livre, e o condena – diz que ele não é civilizado”, revela a doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Arlete Fonseca.

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Cultura caipira sob outra perspectiva

A cultura caipira coletada, criada e difundida por Cornélio Pires desconstruía esta imagem. Ele defendia que mesmo ao deixar o campo, o caipira não devia perder seus atributos característicos: camaradagem, alegria e simpatia.

O contato com a visão de Pires fez Lobato rever sua posição e, inclusive, escrever uma carta elogiosa ao folclorista. “Você, Cornélio, é um dos pouquíssimos que vão ficar. Há tanta verdade nos seus tipos, tanta vida; há tanto humanismo na tua obra. Há tanta beleza e tanta originalidade em teu estilo, que estás garantido (…) Um sincero abraço, Monteiro Lobato”.
No áudio, além da análise da importância da obra de Cornélio Pires para a valorização da cultura caipira, o contador de histórias e educador Giba Pedroza traz sugestões de atividades envolvendo causos e superstições para o ensino fundamental.

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Transcrição do Áudio

Música: Introdução de “Me ajuda meus companheiros” (domínio público), com Caipirinhas e Caipirinhos

Giba Pedroza:
Cornélio Pires é uma grande ponte, grande holofote pra gente discutir nossa identidade, nossas raízes, nossos traços caipiras tão decantados e, ao mesmo tempo, tão maltratados assim o conceito de caipira.
Oi, eu sou Giba Pedroza, apaixonado pelo universo da literatura, da oralidade; pesquisador e contador de histórias, escritor.

Arlete Fonseca:
O falar do caipira tem a ver tanto com a língua do português medieval – que é uma mistura do português e do espanhol – e do indígena. Então, tem um porquê falar muié, cuié.
Meu nome é Arlete Fonseca de Andrade, sou professora, tenho formação acadêmica na área de sociologia, de antropologia, de cultura brasileira. Sou da PUC de São Paulo…

Vinheta: Instituto Claro – Cidadania

Música: Introdução de “Preguiça de Coleira” (Lalau e Paulo Bira) fica de fundo

Marcelo Abud:
Cornélio Pires foi um dos principais defensores do dialeto caipira. Neste podcast, você vai acompanhar sugestões de como valorizar a cultura caipira no ambiente escolar. Vai conhecer também um pouco da importância do jornalista, escritor e folclorista que chegou travar uma batalha intelectual com Monteiro Lobato para desmistificar a imagem em relação ao caboclo.

Arlete Fonseca:
O Monteiro Lobato escreveu um artigo que, depois, foi publicado no livro “Urupês”, de 1918. Esse artigo, que se chama “Velha Praga”, publicado no “Estado de São Paulo”, é uma crítica sobre a destruição do ecossistema. E pra quem que o Monteiro Lobato vai apontar o dedo? Ele vai apontar e acusar o caboclo, aquele homem livre, que não estavam nem na condição de ser senhor e nem de escravo, e nem de populações indígenas. Então, ele é o autônomo, o trabalhador livre.

Causo de Barnabé interpretado por Giba Pedroza:
Ontem, quando eu fui dormir
Eu tive um sonho lindo
Eu sonhei que tava acordado
Acordei pra ver e tava dormindo

Arlete Fonseca:
E essa resistência do homem livre, do caboclo, em ser um escravo ou um mero funcionário sem direitos, foi interpretada como uma indolência, como uma preguiça – deformação cultural. E essas distorções foram incorporadas ao imaginário social dos políticos e da elite brasileira, por meio do olhar do estrangeiro. O estrangeiro quando vinha pra cá também via o homem do campo e o indígena como um indolente, preguiçoso, desorganizado, cultura deformada, porque ele comparava com a dele – europeia.
Então, o Monteiro Lobato nesse artigo vai acusar o caboclo, que é esse homem livre, e o condena – diz que ele não é civilizado. O artigo ele vai refletir o pensamento de uma sociedade com base no sistema patriarcal e escravocrata, que ignorou os fatores históricos daqueles que não pertenciam à condição de senhor e nem de escravo.

Causo: “Cavando votos” (Cornélio Pires), interpretado por Pedro Massa
Caipira: Vancê que tem viajado muito, tem andado muito aqui pra roça?
Homem: Tenho.
Caipira: Então cê deve cunhecê muitas qualidade de árve.
Homem: Conheço.
Caipira: Vancê cunhece aquel’uma que ta ali perto da ponte?
Homem: Conheço muito. É um ingaieiro.
Caipira: Ingazeiro nada. Aquela árve aqui nóis chama de árve do governo.
Homem: Por quê?
Caipira: Vancê arrepare, ói. Tem parasita inté no úrtimo gaio!

Arlete Fonseca:
Na contramão desses atributos, que saiu nesse artigo no jornal “O Estado de São Paulo”, o Cornélio Pires vai bater de frente com isso e aí o Monteiro Lobato acaba, mais tarde, revendo sua posição e escreve, inclusive, uma carta a Cornélio Pires para elogiar e ele diz assim: “Você, Cornélio, é um dos pouquíssimos que vão ficar. Há tanta verdade nos seus tipos, tanta vida; há tanto humanismo na tua obra. Há tanta beleza e tanta originalidade em teu estilo, que estás garantido (…) Um sincero abraço, Monteiro Lobato”.

Marcelo Abud:
Como educador, Giba Pedroza trabalha bastante com textos e pesquisas deixados por Cornélio Pires. Aqui, ele traz algumas atividades que já levou a escolas e tiveram boa repercussão com estudantes.

Giba Pedroza:
A gente tem o estudo do Cornélio das superstições e das crendices, né? E a gente pode desenvolver essa pesquisa com os alunos, fazer com que eles descubram suas próprias raízes também. Muitos têm familiares que vieram do nordeste ou de cidades do interior de São Paulo e que muitas vezes esses costumes – essas linguagens populares – se confundem também, se permeiam…
Eu, uma vez, tive uma experiência muito bacana, com ajuda de crianças do 5º e do 6º ano, fui pesquisar superstições e crendices. Eu pedi às crianças que pesquisassem com seus avós, com seus bisavós. E foi muito legal, porque uma menina de 11/12 anos, ela me chamou num canto e disse assim: ‘Eu fui pesquisar superstições com minha vó; no começo, ela disse que não sabia o que era isso, mas quando eu expliquei aquele negócio de deixar o chinelo virado, de apontar pro céu e nascer verruga, ela falou: isso é a verdade da vida, minha filha. E aí a minha vó me ensinou muitas superstições’. Isso o dizer da menina. E olha só o que ela me falou: ‘eu não sabia que tinha tanta coisa legal na cabeça da minha vó’.

Marcelo Abud:
Já para o ensino médio, Giba indica que se trabalhe com causos populares.

Giba Pedroza:
Tanto os causos de anedota quanto os causos de assombração, que é um universo que eles adoram – os pequenos também gostam muito, no ensino fundamental, dos causos de assombração. E a gente pode, inclusive, fazer uma ponte, quando for falar da oralidade, dos contadores de causo, dizer e fazê-los perceber de como os contadores de causo, na verdade, são os ancestrais de uma coisa que eles curtem muito hoje, que é o stand up comedy.

“O Causo do Cemitério” (recolhido por Cornélio Pires), com Giba Pedroza, em apresentação de “Caipirinhas e Caipirinhos”:
Diz que o caipira é medroso – e é verdade!
Tinha um moço que era tão medroso, mais tão medroso, ele morria de medo de passar em frente ao portão do cemitério. E arrumou uma namorada, que morava do outro lado da cidade, e pra passar na casa dela não tinha outro caminho – ele até que tentou – tinha que passar na frente do portão do cemitério.
Numa noite, a moça tava mais cheirosa, a conversa tava mais gostosa, quando ele olhou no relógio, faltava 15 pra meia-noite. Morrendo de medo, se despediu da moça e saiu correndo. Mas quanto estava bem pertinho do portão do cemitério, faltava 5 pra meia-noite. As pernas tremia, o cabelo fiou ouriçado assim, de repente, ele suspirou aliviado. Ele olhou pra trás e viu uma velhinha de 99 e lá vai idade, vinha tocando uma bengalinha assim no chão, ele perguntou ‘moça, a senhora vai pras banda de lá?’ ‘Eu vou bem ali pros lado do cemitério’. Deu o braço pra velhinha, foi conversando. Ele ficou bem mais tranquilo. Quando chegou bem na frente do portão do cemitério e aí ele perguntou assim: ‘Posso perguntar uma coisa pra senhora?’ ‘Pode!’ ‘A senhora diz que passa aqui toda noite.’ ‘Toda noite, meu filho, faço o mesmo caminho há muitos anos’. ‘A senhora não tem medo, na idade que a senhora tá, de passar sozinha assim, uma hora dessa, bem na frente do portão do cemitério?’ A veinha sorriu e disse assim pra ele: ‘Ai, eu tinha tanto medo quando eu era viva, agora não’. Esse moço nunca mais voltou pra ver a namorada, que está esperando até hoje.

Giba Pedroza:
Esse é um causo que foi estudado, pesquisado, recolhido por Cornélio Pires e outros pesquisadores também.

Música: “Meu pequeno coração caipira”, com Caipirinhas e Caipirinhos, fica de fundo

Marcelo Abud:
Cornélio Pires defendia que o progresso do caipira viria com acesso à educação e à saúde pública. Mas também almejava que isso acontecesse sem se perder os traços de camaradagem, alegria e simpatia, ao chegarem à cidade grande.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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