Em 13 de junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, após analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e o Mandado de Injunção (MI) 4733, enquadrar o preconceito contra LGBTI+ na Lei de Racismo (Lei 7.716/1989). A decisão enfatizou a demora do Congresso Federal em aprovar uma lei sobre o tema, interpretando como urgente a necessidade de proteger essa população. Na prática, mesmo com cobertura da lei, ainda são muitas as barreiras para denunciar a LGBTfobia.

“As sanções para quem descumpre a lei do racismo se tornaram as mesmas de quem possui atitudes LGBTfóbicas. Além disso, parte da decisão do STF explicou que essa orientação judicial vale até o Congresso aprovar uma lei nacional sobre o tema”, explica a gerente de campanhas da All Out, Ana Andrade. Uma pesquisa da organização intitulada “LGBTIfobia no Brasil: barreiras para o reconhecimento institucional da criminalização”,coordenada pelo Instituto Matizes, apontou 34 barreiras para efetivar a decisão do STF.

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“Em muitos estados, não há campos de orientação sexual e identidade de gênero nos sistemas de preenchimento de Boletins de Ocorrência (BOs). Com isso, é impossível registrar que a motivação de um crime de agressão ou assassinato foi preconceito, que é agravante para a pena”, lembra Andrade.

‘Trabalho de formiguinha’

Ainda segundo o levantamento, menos da metade dos estados brasileiros e de 30 municípios têm leis específicas contra a LGBTfobia. Além das dificuldades de efetivar as denúncias, há resistência das forças de segurança pública e do sistema judicial em reconhecer e aplicar a decisão.

“Sem essa informação no BO, é impossível gerar dados e cobrar mais políticas públicas e segurança para essa população. Sem estatísticas, é como se o problema não existisse.”, ressalta a advogada e presidenta da comissão de diversidade sexual da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB-DF), Cíntia Cecílio. “E isso ocorre quando, segundo monitoramento do Grupo Gay da Bahia, somos o país que mais mata pessoas transgêneras no mundo”, acrescenta.

Como a segurança pública é um campo de responsabilidade de cada estado, a padronização dos BOs em todas as delegacias do país é inviável. “É como se tivéssemos diversos países dentro de um”, compara Cecílio.“Cada estado possui seu sistema de tecnologia. Seria necessário que cada um deles fizesse a sua própria adaptação e incluísse pelo menos uma forma de registrar o preconceito contra LGBTI+. É um trabalho de formiguinha”, afirma Andrade. Para chamar atenção para o problema, a ALL Out criou a campanha ‘Resolve esse BO’, que visa informar e colher assinaturas.

Cecílio explica que sem a informação de LGBTfobia no BO, é necessária a ajuda de um advogado para que o crime seja descrito e reconhecido no inquérito. “Caso contrário, o juiz lerá o texto sem compreender e o crime será investigado como injúria ou outro”, informa.

Violência institucional

Além do BO, o levantamento da All Out listou a dificuldade de produzir provas para comprovar a intencionalidade do crime LGBTfóbico e o despreparo da força policial para acolher as vítimas como outros dois empecilhos.

“Há estados com a opção do boletim online, mas não é regra. Isso facilitaria para pessoas que têm medo de ir à delegacia e sofrer violência institucional — aquela praticada por agentes de instituições públicas. Ou seja, medo de sofrer retaliação, preconceito ou ser atacado novamente na delegacia por quem deveria proteger”, pontua Cecílio.

Segundo o gerente e fundador do Centro de Acolhida a Mulheres Trans Florescer, Alberto Silva, o não reconhecimento do nome social de travestis e pessoas trans nos procedimentos de denúncia por policiais, delegados e investigadores ainda é realidade.“Quando a pessoa trans ainda não tem o seu nome social retificado no documento, a sua identidade de gênero costuma ser desrespeitada. Na prática, há esse distanciamento do que o STF decidiu e a realidade, dependendo da leitura do profissional que estará à frente da situação na delegacia”, explica.

“Com isso, inúmeras pessoas deixam de procurar essa retaguarda para não sofrerem novas violências”, complementa. “Não será um único curso que conseguirá capacitar esses agentes, mas formações continuadas. Assim como mais criminalização nas corregedorias das polícias dos agentes que cometem arbitrariedades”, analisa Cecílio. Para reduzir a violência institucional, a advogada também aponta a criação de mais delegacias especializadas em crimes contra a diversidade. “Estas estão presentes em poucas cidades e não funcionam à noite, finais de semana e feriados”.

Não reconhecimento

Outra barreira que impede que a criminalização da LGBTfobia saia do papel é a falta de reconhecimento jurídico. Violências e agressões que deveriam ser enquadradas como racismo, na prática, são tipificadas pela justiça como injúria racial, injúria simples e lesão corporal. “Há ainda a dificuldade da Lei de Racismo em absorver diferentes formas de discriminação. Na lei do racismo, injúria racial e racismo são coisas diferentes e isso dificulta entendimento do Ministério Público, delegado ou juiz durante o processo de LGBTfobia”, conclui a advogada.

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