O turismólogo Alan*, de 43 anos, era criança quando foi encaminhado a uma psicóloga por não aparentar ser heterossexual. “Ela dizia que só podia brincar de carrinhos e bolas por serem brinquedos de meninos, não com bonecas, que eram de menina. Como resultado, desenvolvi medo de bonecas na infância”, relembra.

O professor de teatro Márcio*, 61, tinha 25 anos quando entrou em um grupo de terapias esotéricas. “Depois de uma ‘cirurgia espiritual” fui informado que já tinha cumprido a minha personalidade gay e que não seria feliz sendo assim. Cheguei a me envolver com uma mulher do grupo até perceber que eles falavam o mesmo para todos os homens gays que apareciam”, relata.

Tais tentativas de “correção” de orientação sexual ou identidade e expressão de gênero, porém, não ficaram no passado. As chamadas “terapias” de conversão, também conhecidas popularmente como “cura gay”, acontecem em pelo menos 26 formatos atualmente no país, como apontou um levantamento da ONG All Out com o Instituto Matizes publicado em julho de 2022.

A pesquisa “Entre ‘curas’ e ‘terapias’: esforços de correção de orientação sexual e de identidade de gênero de pessoas LGBT+ no Brasil” se baseou em relatos de sobreviventes e de especialistas de áreas diversas. Ao todo, foram identificados 9 formatos de “terapia” em contexto religioso; 8 em familiar; 6 em saúde física e mental e 3 em ambiente escolar.

“A pesquisa deixou claro que a prática ainda é realidade no país e não fica apenas restrita a ambientes religiosos, como pensamos inicialmente. Aparece em consultório de pediatra, sessão de coach e até em aulas de educação física”, relata a gerente de campanhas da All Out na América Latina, Ana Andrade. “A compreensão sobre o fenômeno é mais difícil hoje porque ele é difuso e acontece por longos períodos na vida da pessoa. Além disso, é híbrido e os contextos se entrelaçam: pode começar na família, passar simultaneamente para contexto religioso e de saúde e caminhar para outros espaços”

Crianças são vulneráveis

Em comum, as “terapias” de conversão operam com violência psicológica e também física – caso de castigos, jejuns forçados e penitências. Segundo o documento, foram relatados ainda isolamento social, extorsão, aplicação de hormônios e medicamentos sem consentimento ou indicação, chantagem, ameaças de internação e constrangimentos públicos.

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“Como consequências, os entrevistados relataram pensamentos suicidas e estresse pós-traumático, por interiorizar a ideia de ser errado, necessitar de cura ou consertado. Apareceu sentimento de inutilidade, de inadequação, transtornos alimentares – por serem obrigados a jejuar ou comer além de seu desejo — transtornos sexuais e também cicatrizes físicas deixadas pelos processos”, acrescenta Andrade.

Crianças e adolescentes foram apontados como mais vulneráveis às práticas. “Pela ausência de consentimento, já que legalmente estão sob a responsabilidade de adultos, e pelo uso de laços afetivos como coerção. As práticas são impostas por pessoas que representam autoridade e afeto, como familiares e lideranças religiosas”, informa Andrade. Menores de idade tampouco possuem condições de denunciar o ocorrido. “Quando a sua família é religiosa, toda a sua comunidade, amigos, parentes estão nesse contexto. Denunciar é correr o risco de perder tudo o que se tem”, lamenta Andrade.

Fora do contexto religioso, os formatos surpreenderam. “As terapias encontradas no âmbito da saúde física e mental tinham em comum a tentativa de transformar a identidade da pessoa em uma patologia, como um distúrbio físico e metabólico. Entre os casos, houve um psiquiatra que receitou hormônios masculinos para um menino visto como afeminado”, relata Andrade.“Se alguém diz para uma criança que ela está doente, tem um defeito. Isso vai reverberar negativamente pelo resto da vida.

No contexto familiar, as “terapias” acontecem como uma preocupação dos pais. Entre as práticas estavam levar grupos de oração e “ex-gays” para a residência, ou expor a pessoa aos amigos e familiares. “As crianças são apontadas como LGBTQIA+ pelo olhar do outro, sem saber o que aquilo significa e se realmente são”, pontua a pesquisadora. No âmbito escolar foram identificadas práticas lideradas por uma diretora de escola, por um professor de educação física e por um docente de religião.

Práticas são ilegais

Doutor em psicologia clínica e membro da Comissão Especial LGBTQIA+ do Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP- DF), Felipe de Baére explica que tais procedimentos são ilegais e podem ser considerados criminosos, por serem condutas LGBTIfóbicas.

“Desde 2019, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela criminalização da homofobia e da transfobia. E no que concerne à psicologia, desde 1999, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) tem se posicionado contra a lógica da patologização das dissidências sexuais e de gênero”, explica.

Normativas como a Resolução 01/99, 01/18 e 08/22 criaram normas para profissionais da psicologia no atendimento a essas pessoas, sob o entendimento de são expressão legítima da sexualidade humana. “E o Código de Ética Profissional da Psicologia proíbe aos profissionais a indução e convencimento de determinada orientação sexual, pois nessas práticas opressoras se encontra a ideia de que a heterossexualidade e a cisgeneridade seriam as únicas orientações sexuais e identidades de gênero naturais e legítimas”, contextualiza Baére.

No caso de “terapias” de conversão lideradas por psicólogos associados ao Conselho, esses podem ser denunciados na própria instituição. Nos demais, o Ministério Público pode ser acionado. Contra o problema, Andrade explica que são necessários esforços diversos e tempo para esclarecer que a pessoa LGBTQIA+ não precisa de cura. “Consideramos as terapias de conversão como práticas de tortura e lançamos uma ideia legislativa para que as pessoas LGBTQIA+ sejam protegidas na lei sobre o tema, que já versa sobre intolerância religiosa e racial. Lembrando que o STF equiparou a LGBTfobia ao racismo”, destaca.

“É preciso difundir e fortalecer as legislações que já existem e as normativas do CFP. Conscientizar as pessoas LGBTQIA+ sobre a prática para que elas identifiquem se acontecer com elas e trazer visibilidade midiática mais positiva sobre o que é ser LGBTQIA+, como em personagens de novelas e séries”, recomenda Andrade.

* Os nomes reais das fontes foram preservados a pedido dos mesmos

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